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Rui Sousa

CRUZEIRO SEIXAS

Tal como acontece no contacto com algumas das inconfundíveis paisagens produ-zidas pelo seu inesgotável e genial labor, a presença de Artur do Cruzeiro Seixas transporta sempre para uma sensação de estranheza. Parece sempre que estamos na presença de uma emanação de um outro tempo, e não apenas por na verdade Cruzeiro Seixas ter sobrevivido às mais diversas ameaças de que o século XX e as primeiras duas décadas deste século foram pródigos, entre o horror e o espanto renovado tão caros ao projecto surrealista que com ele se confunde. A sensação de ausência de tempo, ou, aproveitando a forte presença do imaginário lunar nas suas obras plásticas, uma certa ausência de atmosfera previsível, é também, e sem qual-quer paradoxo, uma sensação de presença de todos os tempos. A sabedoria de que o Artur, como a mais fiel e profunda natureza surreal, é um fiel portador, e um sóbrio mas sempre disponível porta-voz e transmissor, é fruto de uma série de vasos comunicantes entre tempos que não conhecemos, por termos chegado de-masiado tarde ou dede-masiado cedo, e entre tempos que nunca poderíamos conhe-cer, pois dependeriam da possibilidade de habitarmos a mesma galáxia interior na qual se refugiou do mundo para mais amplamente o confrontar e o converter em testemunho e em hipótese sempre em aberto.

A IDEIA – revista de cultura libertária

Conheci pessoalmente o admirável poeta quando, num gesto da mais pura gene-rosidade, impulsionado por contactos amigos distribuídos entre Carlos Cabral Nu-nes, da Perve Galeria, e o mais representativo rosto visível do surrealismo, Perfecto Cuadrado, foi possível contar com Cruzeiro Seixas no Congresso que organizei, em 2013. Tinha falado com ele uma ou duas vezes por telefone, e por isso mesmo já tinha sido parcialmente introduzido a algumas das pedras de toque basilares do seu discurso, como a memória omnipresente de Mário Cesariny e de António Ma-ria Lisboa, a dificuldade em aceitar o lugar do abjeccionismo no quadro surrealista português, a necessidade de se queixar permanentemente das condições materiais que lhe couberam em sorte ou o impulso sábio, arguto e ao mesmo tempo jovial e sedento de novos horizontes com que comentava as crises do presente para mais amplamente se dedicar a ponderar as linhas com que poderia eventualmente vir a coser-se um novo mundo, a surgir do afundamento à vista dos sistemas dominan-tes e da necessidade de uma nova afirmação do Homem pleno. Tudo sempre com uma confiança na minha geração e no meu próprio trabalho modesto de estudo do surrealismo a que, vou lamentando, nunca conseguirei corresponder. Mas enfim, às expectativas desta natureza acaba sempre por se responder com um sorriso so-nhador e uma ponta de remorso pensativo.

O Artur esteve presente na Fundação Calouste Gulbenkian, participou na inau-guração do evento, preencheu-nos desde logo a todos com as memórias formidá-veis do seu convívio com António Maria Lisboa, naquele evento homenageado e com o testemunho das cicatrizes vividas pelos jovens surrealistas portugueses nas suas incursões de deslumbramento pelas ruas da cidade tenebrosa e das outras cidades míticas em que estiveram ou sonharam estar, o que vem a ser em muitos aspectos o mesmo. Inevitavelmente, a sua intervenção acabou, também, por intro-duzir o assunto fundamental de toda a experiência vital de Cruzeiro Seixas: os anos de Angola e a emocionada identificação com a atmosfera da terra africana, das suas janelas abertas para realidades outras que a civilização suposta havia deixado no esquecimento ou aprendera a escravizar e a diminuir nas suas riquezas e nas suas oportunidades de sentido. Como tantas e tantas vezes fez questão de considerar, Cruzeiro Seixas nunca chegou a sair de África, como, confirma-o o derradeiro en-contro com Cesariny e Fernando José Francisco, promovido por Carlos Cabral Nunes, nunca chegou a deixar as proximidades afectivas e criadoras que o ligaram aos amigos da juventude ideal surrealista, por mais que as leis da vida os tenham separado, umas vezes em nome da vidinha quotidiana, outras em função de desen-tendimentos próprios da mitologia do surrealismo em terras portuguesas. A sua presença nos demais dias do evento, sempre disponível para ouvir e para acolher toda a gente, foi ainda marcada por bem-humorados reencontros com Eurico Gon-çalves, Fernando Grade e outras personalidades notáveis. Momentos só ao alcance de quem enfrenta descomplexadamente a vida, indiferente aos olhares preconcei-tuosos da sociedade e às marcas deixadas pelo tempo, sobretudo esse tempo que insistem em querer transformar numa máquina de indiferenças e de caducas ab-dicações da plasticidade e do espanto.

Entrevistei-o antes de regressar a Famalicão e o agradecimento por ter decidido receber-me e dispensar-me algum tempo para responder a perguntas cheias de uma ganga académica que para ele pouco mais era do que uma espécie de sexo dos anjos, precisamente por isso sem desejo nem alma nem vitalidade, só é superado

A IDEIA – revista de cultura libertária

pela alegria com que me presenteou com uma das suas obras. Um momento de acesso a um tipo de propriedade que nunca se chega verdadeiramente a possuir, pois a arte é a propriedade inapropriável por excelência. Digamos que corresponde

a uma forma de aceder ao imaginário de Cruzeiro Seixas sempre que de tal neces-sito, ou melhor, sempre que de tal necessitasse, caso não fosse para mim de ex-trema facilidade identificar as singularidades desse universo. E isto percebendo muito pouco de arte, para desgosto parcial do Artur, que, já na Casa do Artista, em várias visitas que lhe fui fazendo, parecia querer que eu ajudasse a resolver alguns dos problemas que mais o incomodavam, desde logo a carência de boas exposições dedicadas ao surrealismo e a um mais amplo dimensionamento da arte portuguesa, por exemplo de Amadeo e de Pascoaes. Na sua opinião, eu poderia compreender o surrealismo de uma forma muito mais pessoal, e muito mais pró-xima da sua própria espessura, se conseguisse libertar-me das amarras do saber académico e das fronteiras entre os domínios da literatura e das artes, num plano no qual as áreas do conhecimento convivessem quebrando o pensamento totalitá-rio da norma dos bem-pensantes. Ouvi sempre, encantado, estas lições e pesqui-sei-me, sempre que ia à Casa do Artista, numa dimensão de mim próprio que talvez desconhecesse e que residia numa curiosidade natural que ultrapassa, em muito, as limitações práticas. O Artur ajudou-me nesse sentido, com a sua generosidade, a sua abertura de espírito, a sua confiança inquebrável na perenidade do surrea-lismo, a sua capacidade para conduzir todas as conversas a um horizonte de poesia

Fotografia de João Prates

que, por vezes, estalava naquela admirável memória com que recuperava um po-ema. De Pessoa, na maior parte das vezes. Só esses momentos já valeriam todos os anos votados ao surrealismo e a conhecer os que lhe deram e lhe dão forma.

Como é mais ou menos consensual, o surrealismo também acaba por se fazer da dimensão humana excepcional dos seus grandes representantes e da tendência destes para uma certa performance da sua própria identidade, experienciada de modo a adquirir a espessura necessária para se poder reconhecer no grande palco vital do surrealismo. Em Portugal, Cesariny, Luiz Pacheco, António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria, entre outros, deram à sua própria vivência os contornos riquíssimos de uma sucessão de poemas que fazem com que se pareça conhecê-los mesmo antes de começar a leitura dos seus textos e que contribui para que lhes valorizemos a coragem e a excepção paralelamente ao talento e ao instinto criador.

Ora, Artur Cruzeiro Seixas também merece um lugar destacadíssimo nessa galeria e pelos mesmos motivos. Ciente das especificidades do perfil carismático de Cesa-riny, com a sua exuberância, o seu colorido, a sua necessidade de algo mais para desbravar no fogo mais pleno da mais aparentemente banal das noites, o seu per-curso e a sua intervenção surrealista fizeram-se de um modo bem distinto. Culti-vando uma outra sobriedade, afastando-se da atmosfera carregada das tertúlias dos cafés, exaltando a sua dimensão de empregado responsável pelos pais, mantendo a sua vida privada muito mais distante da ribalta, fazendo da viagem para África uma peça decisiva de qualquer biografia colectiva do surrealismo em Portugal. As próprias opiniões e perspectivas sobre o que foi e o que não foi o movimento sur-realista entre nós, assim como sobre o seu escopo e os seus alcances, diferem ao sabor destas idiossincrasias de personalidade, adequando-se a uma delicadeza que insiste em reconhecer no Mário o verdadeiro génio a seguir por todos, como o fora por ele ao longo de toda a vida. Fazendo-o, ao mesmo tempo que assume a com-plexidade de uma obra poética e plástica que só as debilidades físicas acabaram por condicionar, e que se conta entre as mais vigorosas e extensamente povoadas de toda a história criativa em Portugal, Cruzeiro Seixas fica na memória do inter-locutor como uma espécie de surrealista suave e apto a um mínimo de vida comum, com carta de condução, empregos regulares, direcções de galerias de arte, um certo enquadramento institucional nos últimos anos de vida, algum reconhecimento co-mercial, por exemplo pela Vista Alegre. Mas tudo vivido com uma candura e uma inocência genuínas, pois neste tipo de experiências não há nada de artificial nos mitos, sobretudo nos que criamos para nós e aprendemos a cultivar na experiência poética do mundo. A suavidade de um luar contemplado de um cortinado leve-mente remexido pela brisa, depois de regressar do espaço mítico das praias da Costa da Caparica, por contraste com um tom muito mais vulcânico de Cesariny, que preferia engolir a noite num dos seus momentos de clown chaplinesco ou de esfinge maia.

Assim em todas as ocasiões em que ao longo dos anos o fui vendo. No lançamento de revistas que lhe foram dedicadas, como o número especial da Entre; os encon-tros com Isabel Meyrelles na Perve Galeria, aceitando do público, mesmo sem ou-vir como gostaria, algumas perguntas e a oportunidade para, entre notas de desva-lorização das suas palavras, acrescentar sempre algumas histórias ou perspectivas aos grandes momentos de que foi testemunha activa; os lançamentos da revista A Ideia em que também marcou presença, sempre com uma invejável genica física,

que nem a cadeira de rodas mais recentemente introduzida no cenário consegue obscurecer. Assim nas duas últimas ocasiões em que o vi e falei com ele, o lança-mento do último volume da obra completa de Mário-Henrique Leiria, um dos seus grandes companheiros de aventura, e na inauguração de uma exposição dedicada ao grupo Os Surrealistas. Como sempre, era ainda o inconformado responsável por inúmeros estímulos criadores a ressentir-se da apatia colectiva e da carência de um projecto comum, de uma iluminação dos responsáveis, de um novo espírito de transgressão que trouxesse algo de novo ao cansaço tipicamente português. No panorama apático e servil que é o nosso, qualquer bocejo de Cruzeiro Seixas se arrisca a converter-se numa singular lição de vida e numa oportunidade de trans-figuração para quantos o saibam ouvir. É esta a minha experiência, feita de algu-mas tardes soltas, não muitas, algu-mas as suficientes para ter feito de mim alguma coisa mais. [08-07-2020]

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