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CARTAS [INÉDITAS] DE LUIZ PACHECO v PARA HENRIQUE VARIK TAVARES v

Os envios que de seguida se apresentam de Luiz Pacheco para Henrique Caetano Niny Tava-res (Lisboa, 26-8-1925 – Porto, 3-2-2003), que assinou Henrique TavaTava-res, Henrique Ricardo Varik Tavares ou só Ricardo Varik, conservam-se no espólio do destinatário, que depois da sua morte ficou à guarda das senhoras Maria Teresa Couto Guimarães Gomes Niny Tavares e Alexandra Gomes Niny Tavares Coutinho, viúva e filha do poeta Henrique Tavares. Nascidos na mesma cidade e no mesmo ano, tudo leva a crer que Luiz Pacheco e Varik se conheceram por volta de 1955 no Café Gelo, na Praça do Rossio, e aí tenham convivido pelo menos até 1962, ano em que o grupo se mudou para o Café Nacional, nas traseiras do Rossio. Foi nesse período que Varik publicou a sua obra breve de poeta, três livros em edição de autor: O missal do aprendiz de feiticeiro (1959), Os livros sibilinos da Lusitânia (1960) e Ódio de Bacante (uma gesta orgânica) (1962), há pouco reeditados num único volume (Obra completa – Poesia – vol.

I, 2018). Como se percebe pela correspondência que agora se dá a conhecer, as relações entre ambos não findaram com o fim do Gelo e do Café Royal, este no Cais-do-Sodré e fechado em 1959 (existe fotografia de Varik neste Café com Cesariny, António José Forte, Virgílio Marti-nho, Pepe Blanco e Benjamim Marques), e mantiveram-se por longos anos – o terceiro envio é de 1996 – com uma familiaridade próxima. Conhecemos referência de Luiz Pacheco a Hen-rique Tavares no texto “Uma picardia a Mestre Almada” (Textos de guerrilha, 1979, pp. 17-18), dando-o como fazendo parte do miolo mais genuíno do Gelo, ao lado de Fernando Salda-nha da Gama e de António José Forte – e foi colega de ambos nas bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian para onde entrou em 1968 e donde saiu reformado em 1993 e que constituem o motivo forte das duas primeiras missivas. Pacheco, que chegou a pensar em 1961 entrar como funcionário das referidas bibliotecas, escreveu pelo menos uma vez so-bre este serviço, “As bibliotecas Gulbenkian vão acabar?” (Diário Popular, 30-8-1983), artigo referido na primeira missiva a Varik. As ilhas referidas na segunda, Boega e Flores, situam-se no rio Minho, concelho de Vila Nova de Cerveira. Agradece-situam-se às duas depositárias do es-pólio do Poeta a cedência e a autorização de publicação destas cartas e ainda ao editor e poeta Luiz Pires dos Reys, que se responsabilizou pela edição do volume da obra poética reunida, que no-las deu a conhecer. Transcreve-se com fidelidade a grafia do subscritor, bem assim como outras singularidades gráficas. Por fluência de leitura, corrigiu-se excepcionalmente no final da segunda missiva a palavra “bibliotecáeio” para “bibliotecário”. [ACF]

PRIMEIRO ENVIO [sem sobrescrito]

Lisboa, 23 de Março/84 Meu Caro Henrique Ta-vares, no Verão passado, publiquei no “Diário Po-pular” uma artigalhada

sob o título As bibliotecas de Gulbenkian vão acabar? [sic]; estava internado no sanatório do Barro, perto de Torres Vedras, os elementos de que dispunha eram escassos mas chegavam, com um pouco de exagero, para justificar a pergunta, ou:

para desencadear uma reacção que entravasse o processo se destruição, ali mesmo denunciado. O qual, como deves ter conhecimento, datava de anos atrás: alijar para as autarquias locais o encargo, a manutenção das bibliotecas (só itinerantes ou também as fixas? Isso não sei), como, ainda mais para trás fôra [sic] despachá-las para o Estado. As razões fundas desta manobra, desconheço. Provavelmente, seriam múltiplas. E é melhor nem averiguar.

A artigalhada teve eco (possuo provas) e só muito recentemente, 4ª feira de Cin-

zas, e por mero acaso, vim a saber da resposta que o prezado dr. Davide [sic] MF [Mourão-Ferreira] entendeu dar-me (veio, também, no DP): que era um falso alarme. Reinava a paz em Varsóvia. Se ele inté já havia +3 bibliotecas! E porque torna, e porque deixa.

Estou na dúvida em responder ao tipo. Entenderás que eu estando internado no sanatório, onde havia uma biblioteca estupenda e que, por meu intermédio, já ob-teve umas largas dezenas de volumes, o alarme não fosse meu, marimbando-me.

[ilegível] Maia Lobo, Forte e outros, que eu não estava a fazer de peão-de-brega ou Conde de Monte Cristo vingador do Saldanha da Gama e sua amantíssima Esposa.

Mas a resposta do Davide é parvinha de todo e causou gargalhada geral lá entre os funcionários e a mim: diz o fulano que as itinerantes do Montijo e de Lisboa foram suspensas porque a quilometragem era excessiva para o nº de leitores que acudiam às carrinhas... chama-se a isto cagar na mínima das mínimas lógicas, na verdade dos factos acontecidos (e nada secretos), numa opinião alheia, não de todo em todo ignara ou idiota. É tão fácil virar o argumento contra ele, não apenas com o que de verdade aconteceu mas... com 10 ou 20 razões imediatas. O Davide está nas bibli-otecas porque não calhou ser ministro da Cultura ou ministro de qualquer outra coisa, Saúde; Transportes; do Mar. O Coimbra Martins, da Cultura, recebia orde-nado da Gulbenkian. Este (o Davide) ficou na Gulbenkian (uma espécie de traves-sia no deserto, na sua carreira política) porque algum tacho, rendoso e prestigioso, haviam de lhe arranjar.

Motivo desta carta: eu precisava de alguns elementos, números, etc. Na av. Berna, nem eu os peço nem eles mos dão: o Saldanha é suspeito.

Quererás fazer-me esse favor? Manda postalinho e, serei mais concreto para a próxima, um abraço do Luiz Pacheco

SEGUNDO ENVIO [sem sobrescrito]

Lisboa, 29 de Abril de 1984 Meu caro Henrique Tavares, na carta anexa, datada de há mais de um mês, referia-me a uma próxima (carta).

Aquela não seguiu, vai só agora porque a minha vidinha nestas últimas semanas, com o tempo, húmido, chuvoso, calorento que tem feito dá-me pra [sic] estar na cama a ler romances policiais e não ligar nada ao resto. Aconteceu, entretanto, um facto que me espevitou: li, no “Diário de Notícias”, uma local sobre a transferência da itinerante de Caminha para Vila Nova de Cerveira (mando, podes não ter lido, mas devolve sff). E comecei a perceber, melhor, a negociata: já não se tratava de ALIJAR para as autarquias, com um subsídio da Fundação, o encargo das carri-nhas … mas de NEGOCIAR a coisa. “NUMA QUANTIA DA ORDEM DOS MIL CONTOS”, refere o Presidente de Caminha. Espanto-mor: Caminha estava dis-posta a pagar, Vila Nova de Cerveira, não. Como perceber isto? Apenas por motivos de clientelismo partidário? É o que suponho. Não por acaso, no episódio do Mon-tijo, o David não se limitou a correr de lá com a maluca da Teresa (o Fernando não era problema, porque colocado em Loulé, donde se pirou em circunstâncias mis-

A IDEIA – revista de cultura libertária

teriosas; como, um ano antes, o queriam colocar na Madeira, que foi a pior asneira que ele fez, não ir pra lá), correr com a Teresa, uma eventual, com milhões de pretextos para ser SANEADA, mas extinguir a biblioteca, pura e simplesmente: a zona servida pela carrinha era toda de concelhos APU. Um pouco o mesmo acon-tecera com a de Lisboa. Acho bem que tenham salvaguardado o Forte, dado o seu estado de saúde e ser um bom e antigo funcionário da Fundação. Também a zona deste, da itinerante de Lisboa, andava por concelhos APU. E se (o que vai aconte-cer numa dezena de anos) por cada funcionário, ao qual dá um badagaio e tem de se reformar [palavra ou palavras ilegíveis] burocrático… adeus, bibliotecas!

Escrevi ao tal Pita Guerreiro uma carta (vai também cópia, devolve se faz favor) pedindo-lhe esclarecimentos. Tu conheces a zona, calculo. Caminha é um conce-lho de área limitada e pegado a Cerveira, também mínimo em população. Quando passei por lá, em serviço de Inspecção dos Espectáculos, há 20 anos ou 30, aquilo era mesmo uma trampice. Estive em Cerveira, nos festivais de Arte de 77 ou 78, suponho. A vilória estava em franco progresso, com uma Câmara PPD, mas por uma razão nada “católica”: tinham-se lembrado de exibir, em dias certos da se-mana, filmes pornos, quando em Espanha estavam interditos… não te digo nada:

havia bichas na ponte de Valença, nessas noites. Em Cerveira, abriram cafés, res-taurantes, um maná! E, ainda, dinheiro de retornados, que começaram a comprar quintas e solares e, até, ilhas (ilha de Aboega, das Flores, por exemplo) para insta-larem pousadas, motéis, etc. Creio ter acontecido o mesmo fenómeno noutras lo-calidades de fronteira, Vila Real de Santo António, parece-me, com ligação (posto fronteiriço próximo) fácil a “nuestros hermanos e hermanitas”, desejosos de ver o Marlon Brando enrabar com margarina, no “Último Tango em Paris” (nunca vi um filme desses, nem “A Grande Farra”, nem a “Boca Funda”, os clássicos do género.

O pouco que tenho visto, no Olympia, é de morrer a rir ou de sono). Mas este é um caso aparte [sic].

O meu problema é este: estou a chegar ao limite de poder viver em Lisboa com os dinheiros que recebo e não é tão pouco: 8240$00 da minha reforma de funcio-nário público, mais 15 contos do Ministério da Cultura, por “mérito cultural” … Fora aquilo que cravo aos cravados do Antigamente, livros que vendo, etc. Os 15 contos não chegam a viajar na minha algibeira 200 metros ou pouco mais: do nº 15 da Avenida da República, onde fica o Ministério, passando pela Carris, no Arco do Cego (passe social; este mês, roubaram-mo logo no dia 12), até ao nº 20 da Avenida Rovisco Pais, diante do Técnico, que é onde moro e largo em quarto (10 contos), luz (1 conto), roupa (600$00) e mais qualquer excedente; na farmácia, também em caminho, fica o restante dos 15 bagos. Ora, chateia-me, e já o declarei, aqui, à mi-nha Anfitriã (senhoria), que ficou fodida, chateia-me ser recoveiro, almocreve, an-darilho. Os meus cinco filhos, que moram em Lisboa, gostam de me ver; mas po-derei acrescentar, sem cinismo: eu gosto mais de os ver (e que eles me vejam) não levando as mãos vazias; e, principalmente o Paulo, embora excelentemente insta-lado e mantido pela Lena e Henrique, tem despesas extra (um curso de inglês, em que o convenci a inscrever-se, porque anda a tirar História na Faculdade e precisa dominar BEM uma língua estrangeira). Conclusão: TENHO DE MANDAR ARTIGA-LHADAS para o “Popular”. Pagam, agora, a um conto: uma ou duas por semana, vai, talvez, equilibrar o meu orçamento. Cortando, como estou a fazer, com cerve-jolas e jornalada.

Francamente: a existência, ou não, das bibliotecas da Gulbenkian já me preocu-pou mais. Creio ter sido, decerto, a actividade da Fundação de mais funda e dura-doura e extensa, à escala do território nacional, ACÇÃO CULTURAL, com todos os defeitos que lhe conhecemos. Vi isso em Vieira do Minho, em Lagos, nas Caldas da Rainha, na Sertã, até.

Em Lagos, por exemplo, eu não me aguentava um mês sem a biblioteca fixa: não havia nada para ler naquela terrinha do Príncipe Navegador. Nem bibliotecas par-ticulares: os tipos só queriam era foder conas de estranja (e locais, diga-se, que muitas e boas havia). Ler, comprar livros, não era com eles. Em casa do Rijo, nesse tempo eu e ele mais que tesos, a fominha era tanta que, pela manhã eu ia ao leite à vaca (1 Km), porque fiado. Para comprar o jornal, nesse tempo a 15 paus ou me-nos, ia desencantar garrafas vazias pelos cantos da casa e rebatê-las no supermer-cado. O recurso à biblioteca fixa era a salvação!

Já escrevi demais e desculpa chatear-te com estas fobias pachecais.

O Fernando esteve cá, pela Páscoa: a pedir internamento e urgente. O pintor Álvaro Santos, conhecido pelo Cabeça de Vaca, soube ontem que foi assaltado e sovado e roubado. Já era altura de lhe acontecer um percalço desses, por aquele hábito dele meter os dedos nas algibeiras do Amigo pagante, quando o apanha em delírios ou delíquios de bebedeira. Ora toma!

Diz para cá qualquer coisa, caso queiras, e devolve essa tralha. Ponho à cautela dois selos, porque vai para tua casa, morada fornecida pelo Saldanha. Se fosse para o posto, o teu lugar de bibli-otecário, ia mesmo sem selo nenhum…

Um forte abraço do Luiz Pacheco.

TERCEIRO ENVIO

[Bilhete postal, remetido por Luiz Pacheco, rua Camilo Castelo Branco nº 210, 6º andar, 2910 – Setúbal, para Poeta/Pintor Henrique Tavares, rua Sá da Bandeira nº 351, 2º direito, 4000 – Porto. Frente com selo contendo ilustração e legenda em que se lê: “GALEÃO PORTUGUÊS SÉC. XVI”, carimbado pelos CTT de Setúbal com a data de 5 de Junho de 1996, às 19h.]

Setúbal, 16/6/96 [sic]

Caríssimo: fui ontem a Sines e trouxe este postal. Andava a ver se fugia de Setúbal, mas para o sul não dá. Vou tentar Penafiel, Abragão, terra dos Gonçalves (Eurico, Rui Mário, etc).

Soube pelo Maia Lobo que te tinhas reformado. Quem se reformou ainda hoje e de vez foi o David. Estava a ficar muito visto. O Barahona, lembras-te? Engatou uma miúda de 16 anos e anda cheio de AMOR. Aquilo é que é TESÃO.

Um forte abraço a vocês e escreve.

Luiz Pacheco

CARTA INÉDITA DE LUIZ PACHECO