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Cruzeiro Seixas e a Ascese de Querer Ser Humano

Sofia Santos

“Tenho frio e imploro que me cubram com o dilúvio”

Cruzeiro Seixas e a Ascese de Querer Ser Humano

Derrame-se desta vez luz sobre quem insiste no seu anonimato e, por vezes, pro-cura suprimir a sua importância e influência artísticas. Como quem propro-cura deal-bar para fora deste mundo, como outrora para terras africanas por não mais con-seguir sustentar certo génio que dolorosamente lhe rememoram e remitificam. Mas não vale a pena fugir “de uma sombra que há muito parou ao meu lado” (Seixas:

2003, 28). Essa osmose luciferina as-sim permanecerá, ad aeternum, por-que “só quando o homem / é igual em beleza / a outro homem / pode fazer do outro um retrato”, para depois se aperceber de que “quando faz o re-trato / fica afinal um rere-trato dos dois / na mesma tela / sobrepostos”.

Cruzeiro Seixas (“talvez o único de todos a quem pode chamar-se sem restrições O POETA” (Cesariny: 2014, 161) quer, não sem justiça, substituir-se à obra: “Eu pensava que queriam falar da minha obra...” (entrevista Ber-nardo Mendonça), resignada interjei-ção de quem sentirá para sempre na pele o impacto do arremesso – inespe-rado por equívoco sofrido – contra essa espiral tão negra que é a desilu-são de uma memória que nunca mais poderá ser refeita. E confessa-nos ainda o Mestre, como que anteci-pando esse duro golpe: “Da minha vida nada vai ficar de definitivo, de concluído, de clarificado. Não tive público, nem amigos, nem amor, que verdadeiramente merecessem esse nome. NÃO VIVI, mas, curiosamente, deixarei documentos desse não viver...” (Seixas: 1989).

Jogador de Sonhos Fotografia de João Prates

A IDEIA – revista de cultura libertária

E quer substituir-se sem poder, naturalmente, perspectivar o que apreende quem persegue essa claridade que sempre o aureola: como furtar à arte a sua ori-gem e sentido primários? As mãos de Cruzeiro Seixas, os seus olhos e o seu peito são o corpo que animam as paisagens de que o surrealismo dotou Portugal e além-mar, porque “o corpo é a obra de arte inacabada a que procuramos sempre acres-centar alguma coisa” (entrevista Maria Augusta Silva). Uma paisagem cuja imagé-tica poderia cingir-se à palavra pintada e conversada e que, ainda assim, abanaria desassombradamente os alicerces de quanta “arte” e “artista” que não têm a cora-gem de não se empenhar para sobreviver fora das telas e dos livros. Viver dentro da Liberdade – essa ilusão “que existe apenas dentro da nossa cabeça” (entr. Ber-nardo Mendonça), cujos contornos apenas a Poesia cinzela para se adaptar às cir-cunstâncias do real quotidiano – é um gesto que o Mestre prolongou, convivendo com essa correia tantálica que lhe confinava a Poesia às gavetas do escritório, de-safiando-A a acompanhar o seu trabalho diário, espreitando apenas de quando em vez para se fixar, sem demoras, na eternidade do papel; a comer à sua mesa, mas sem sorver a ebriedade de uma indulgência de que não conhece o hábito; a convi-ver com a solidão de quem à vida se molda sem perder a sua anatomia, indepen-dente a cadáveres esquisitos que não sabem, nem podem saber, ser sozinhos. Essa, sim, é a Liberdade que custa viver, a desagrilhoada da ilusão do verso livre, a sub-limada na transcendência dominadora de um soneto. Mesmo que o cansaço ceda à percepção ontológica desta peleja interminável: “A liberdade dentro de mim es-craviza a minha própria liberdade” (Seixas: 1989). Porque a morte está apenas adi-ada e há que ‘escolhê-la a tempo para a poder amar’ (Forte: 2003, 54). Talvez seja por isso que o Mestre admita que à sua obra apenas lhe falte a morte (Seixas: 1989), essa “outra vida” que abraçamos para, novamente, não ser vivida (Seixas: 2003, 70).

A palavra escrita de Cruzeiro Seixas, paladina sofisticada de um amor que tran-sita a partir de todos os caminhos habitados pela Beleza (um dos móbiles da sua existência poética), essa “estrada prolongada até ao infinito” (Seixas: 1989), abre-se como as suas mãos se abrem para acolher em si quem com ele quer conversar, tendo estabelecido certa vez, a uma jovem impressionada, a equação necessária entre a temperatura das mãos que nas suas acolhia e a do coração que, na sua frente, não sabia ainda que o tempo liquefaz todas as ambições, diferenças e qual-quer verdade: “pergunto-me e pergunto-te / se a verdade existe” (Seixas: 2002, 14).

Essa verdade, que seria o Amor, eterna e contraditoriamente ausente de um sur-realismo que sobrevive aos ombros da interrogação e da indefinição, sem refrigé-rio, com a certeza de que “de certezas não se vive – morre-se” (Seixas: 1989). Como escrever, pintar, criar, enfim, viver algo que se desconhece mas que é toda uma alegoria mirífica da última real tradição viva? “não amo / nem o amor / nem o sonho / nem a pintura / [...] nem estes meus poemas (!) / copo de água fresca / que mais aumenta a sede” (Seixas: 2003, 32). Só se pode dar a vida pelo que não se vê, pelo que se desconhece: “Amo o que não amo / em todas estas coisas, / e indefinida-mente / no fundo de tudo / amo a poesia e os poetas / que dão sempre mais / sempre muito mais / do que peço, / como tu, / mesmo eternamente ausente / meu amor”

(Seixas: 2003, 32). Na impossibilidade da experiência das diversas cristalizações que a Liberdade pode assumir, e que sempre alimentou a existência de quem devotou toda a sua vida à concretização do surrealismo – à parte Luiz Pacheco, desconhece-se um surrealista que tenha tão declarada aversão à sociedade (Seixas: 1989)1 –, Cruzeiro Seixas urde, pela decomposição inorgânica do que percepciona, uma imagética que procura aureolar novamente os seres, os lugares e as atmosferas de um princípio misterioso extravagante à percepção humana, mas presente nas rea-lidades a ela associadas: “O que lhe dá prazer Senhor/é ele sentir a mão/ou a mão/que o sente a ele?/Toda a explicação/Será em vão” (Seixas: 2003, 18); “A minha

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vida segue independente da realidade aparente, parecendo também por vezes in-dependente de mim. Segue como os acontecimentos dos sonhos e sigo-a apavo-rado, mas curioso, pleno de vertigens e de cansaço” (Seixas: 1989).

Mas como classificar esse princípio senão de profundamente humano? Neces-sariamente humano, com prejuízo de, ad contrario, toda essa realidade não poder ser comunicada, apreendida, recriada, poetizada, no fim de tudo, vivida? Ao mesmo tempo, o homem é o princípio de todas as coisas: “Se eu acreditasse em Deus pensava em mim e deixava logo de acreditar” (Seixas: 1989). Mesmo que a esse princípio não se destine uma ontologia salvífica (“A eternidade / só existe por-que acreditamos nela/digo-te eu,/por-que não fico nem passo” (Seixas: 2002: 16), a dú-vida mantém-se na serenidade de uma alternância que cobre o rosto de quem in-terroga: “Oh meu Deus que não existes/vem/pois eu sei/que ou tu ou eu” (Seixas:

2004, 18).

No fim de tudo, é essa realidade inefável que o surrealismo procura e que Cru- zeiro Seixas fixa: esse projecto de Mallarmé que, mais que conceito puro, é corola ausente de todos os ramos (Mallarmé: 2011, 35), esses que à Beleza distraem e que, no fim, não A sustenta: “posso ver realmente real / a árvore frondosa que já foi árvore antes de ser a sombra” (Seixas: 2004, 27). Longos são os séculos em que o exercício da fatuidade sobre as coisas dotou não só a Poesia mas essas mesmas coisas de uma Beleza imperscrutável e impraticável. Na verdade, é toda essa a Sua ambição: “changer la vie”. Ao poeta também é dado apenas uma fracção de mo-mento para A descrever. Mas aos Mestres, essa mesma fracção é tudo quanto de-sejam e precisam para a poder estender à eternidade. Cruzeiro do Seixas perma-necerá, para além das gavetas do seu escritório, a “abrir janelas que já não há”

(Seixas: 1989).

Nota: 1) “Não sei de pior insulto feito ao homem que esse de se pretender que é no campo social que ele tem de se realizar...”; “Porquê viver numa sociedade homossexual? O que eu não consigo é viver em qualquer sociedade.” (Seixas: 1989).

Bibliografia: Cesariny, Mário, (2014). Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas (1941-1975). Ed. Per-fecto Cuadrado, António Gonçalves, Cristina Guerra. Famalicão: Fundação Cupertino Miranda;

Forte, António José (2003). Uma Faca nos Dentes. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003; Mallarmé, Stéphane (2011). Crise de Versos. Trad. e nota de leitura de Pedro Eiras e de Rosa Maria Martelo, Porto:

Deriva; Seixas, Artur do Cruzeiro (1989). Desaforismos. Intr. Luís Teixeira da Mota, texto de Alberto de Lacerda. Lisboa: Centro de Arte, Galeria, s/p.; – (2002, 2003, 2004). Obra Poética. Vols. I, II, III.

Org. de Isabel Meyrelles. Lisboa: Quasi.

Entrevistas: a Bernardo Mendonça (3-2-2017) e a Maria Augusta Silva (v. na web).

de Imagens fia de Jo Francisco Vilhena (2020)

CARTA [INÉDITA]