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António José Queiroz

[1925

s

JOÃO VASCONCELOS

s

1983]

António José Queiroz

Foi “um menino alegre e irrequieto, um adolescente impetuoso, um soldado triste, um homem que, muito cedo, perdeu a alegria de viver”. Assim o disse quem o conheceu na intimidade (Maria José do Lago Cerqueira). Era frequentador do Café-Bar, em Amarante. Nos anos 70 do século passado, vi-o inúmeras vezes numa mesa de canto, quase sempre sozinho, a fazer desenhos num pequeno caderno. Eu saudava-o com uma educada “boa-tarde”. Com um leve sorriso e um discreto aceno de simpatia, retribuía a minha saudação. Nunca me atrevi a ir mais além, porque sempre o vi mais como uma figura mitológica do que pessoa de carne e osso como eu. Os Pascoaes, no imaginário amarantino, eram de facto figuras lendárias. E ele era a representação viva (e última) dessa lenda.

Nos finais dos anos 80, por força da criação de uma revista literária (Cadernos do Tâmega), comecei a frequentar com alguma regularidade a Casa de Pascoaes, em S. João de Gatão. Os aposentos do poeta, onde se encontrava o seu espólio literário e sentimental, eram-me franqueados com simpatia e amizade por Maria Amélia Vasconcelos, viúva de João. Com ele casara em Março de 1953. Aí nascera seu ma-rido, a 23 de Setembro de 1925. Aí viria a morrer, de doença prolongada, a 8 de Junho de 1983.

Esse mítico solar, que João herdara de seu tio e padrinho Teixeira de Pascoaes, foi frequentado no século XX por inúmeros escritores, poetas e artistas. Um deles foi Manuel D’Assumpção, “Rei Doido da pintura portuguesa”, como dele disse Mário Cesariny, que por feliz acaso aí conheci. A partir de finais dos anos 50, nele passou largas temporadas o extraordinário, infeliz e (por demasiado tempo) incom-preendido pintor. A última aconteceria no Verão de 1969. Poucos dias depois da sua partida suicidava-se em Lisboa (21 de Julho).

asconcelos e Mário Cesariny Pascoaes, final da cada de 60 do c. XX)

Mais do que amigos, João Vasconcelos e Manuel D’Assumpção foram dois ir-mãos, unidos pelo amor à arte. João admirava o talento ímpar de Manuel e o li-rismo cromático da sua pintura (revelada aos amarantinos, em Julho de 1960, na exposição individual que teve lugar na então Biblioteca-Museu Albano Sardoeira).

Que por sua vez reconhecia a hombridade e a generosa fidalguia de João. E porque não tardou a perceber que a pintura era neste vocação antiga e calada, aconselhou-o a frequentar as aulas da Galeria Alvarez, naconselhou-o Paconselhou-ortaconselhou-o. Faconselhou-oi, paconselhou-ois, D’Assumpçãaconselhou-o quem

“o pôs a pintar”, como confessaria numa entrevista o seu confrade amarantino quando começou a expor.

A cronologia dessas exposições é a seguinte: 1964 (Colectiva, Porto, Galeria Alva-rez); 1965 (Individual, Lisboa, Galeria Divulgação); 1967 (Colectiva, Porto, Coope-rativa Árvore); 1968 (Com Justino Alves, Porto, Galeria Alvarez; Individual, Ama-rante, Museu Albano Sardoeira); 1969 (Colectiva, AmaAma-rante, Biblioteca-Museu Albano Sardoeira); 1971 (Individual, Porto, Galeria D); 1972, 1973, 1974 (In-dividual, Lisboa, Galeria Ottolíni); 1978 (Colectiva, “Nordeste 78”, Itinerante: Alijó, Régua, Vila Real, Murça, Chaves, Moimenta da Beira, Lamego, Bragança, Miran-dela; Individual, Amarante, Biblioteca-Museu Albano Sardoeira; Individual, Cas-telo Branco, Museu de Francisco Tavares Proença Júnior); 1979 (Individual, Esto-ril, Junta do Turismo da Costa do Sol; Individual, Lisboa, Galeria S. Francisco);

1980 (Individual, Lisboa, Galeria S. Francisco); 1982 (Individual, Lisboa, Galeria S.

Mamede); 1983 (Individual, póstuma, Estoril, Junta do Turismo da Costa do Sol);

1984 (Individual, póstuma, Guimarães, Galeria Gilde); 1985 (Individual, póstuma, Amarante, Cento Cultural de Amarante); 1988 (Individual, póstuma, Porto, Galeria Zen).

A mais recente exposição de João Vasconcelos (ou João de Pascoaes, como era conhecido pelos seus conterrâneos, nome que também Cesariny gostava de lhe chamar) aconteceu este ano, na Casa da Granja, em Amarante, uma construção do século XVII, que os fados da sorte quiseram que, em 1855, fosse parar às mãos do avô materno de Amadeo de Souza-Cardoso. Restaurada em 1915, estava destinada (diz a tradição) a ser residência do genial artista, não fosse a pneumónica ter-lhe ceifado prematuramente a vida. Actualmente é um espaço cultural que acolhe a Associação para a Criação do Museu Eduardo Teixeira Pinto (1933-2009), inesque-cível fotógrafo da paisagem amarantina e dos sempiternos nevoeiros do Tâmega, que retratou vezes sem conta, com um olhar profundamente humano, as crianças e os velhos das aldeias pobres do Marão.

Esta exposição/homenagem foi inaugurada a 7 de Março. O seu encerramento estava previsto para 30 de Abril. Mas, por força da emergência sanitária que se vive, poucos dias esteve aberta ao público. A consagração de João Vasconcelos no concelho que o viu nascer terá, pois, de ficar para próxima oportunidade.

Os quadros expostos (mais de quatro dezenas) dão razão a Maria José do Lago Cerqueira, quando, a propósito da pintura do artista (que era seu primo), se referiu aos “penosos caminhos percorridos que o levaram a um rumo definitivo”. Permi-tem ainda entender melhor o tesPermi-temunho de Cesariny, publicado no catálogo da exposição póstuma em Guimarães. Dele recupero estes dois parágrafos, de tom claro/escuro:

“A tarefa é de vulto. Trata-se de fechar a porta a todos os prestígios da ‘arte ar-tística’ e reatar os veios de uma arte mágica que existe desde que o homem come-çou a olhar. Passar ao largo de escolas de magistérios que dão a Profissão e tiram a Vida, e ficar só com a própria Sombra ao Sol. Então a montanha abre-se, voa em círculos e ângulos violentos, tocada pelos dois polos da interrogação.

Dá a matéria insondável, o fundo rugoso intransponível. Às vezes põe-se bonita, e mesmo bela, desvanece-se em cores – as carnes do esqueleto. Mas vem a noite, e

é a Montanha dos Signos, o Sim que passa sobre o Não que se afunda”.

Cesariny sabia bem do que falava. Conheceu João Vasconcelos como poucos o terão conhecido. E a sua pintura talvez como mais ninguém. As raízes dessa pin-tura, onde é constante um sentimento de procura e inquietação, mais do que em qualquer escola, encontram-se a meu ver no “mundo” de Teixeira de Pascoaes.

Revive nele.

Quem quiser entender a pintura de João Vasconcelos, andará bem avisado se começar por ler primeiro a poesia de Teixeira de Pascoaes. Os seus versos, “roxos versos outonais”, tal como os quadros de João Vasconcelos, espelham esse mundo panteísta, cuja “expressão fisionómica” se revela na permanente e angustiada “sau-dade de Deus”. Um mundo onde o homem “aparece como suprema expressão da Natureza”, idealizada no Tâmega e no Marão, a Montanha Sagrada (“Montanha dos Signos”) cujos misteriosos horizontes ficam “na vizinhança agreste do Infinito”.

No lugar, diz o poeta, onde há “silêncio, fria treva, solidão; / um vago Azul sem fim, / a sombra da futura Criação”. Porque o destino do homem é “concluir a imperfeita Criação / que Deus iniciou…”. Estou em crer que foi também por isso que João Vasconcelos quis ser pintor…

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