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Henrique Garcia Pereira

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t ENCONTRO IMPROVÁVEL (OU O ACASO OBJETIVO) t

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onheci o Luiz Pacheco na sua casa de Massamá, pela mão do António Ribeiro (filho de Orlando Ribeiro, o geógrafo), que me disse – num fim de tarde ao balcão do Gambrinus – ter um amigo que estava à procura de quem lhe “alu-gasse uma parte de casa”. Nessa altura – primeiros meses de 1971 – estava farto do bairro da Beneficência (onde morava de ‘comuna’ em ‘comuna’ com a mi-nha companheira, tentando reproduzir o espírito de Mai68), e a ideia de ir viver para fora de Lisboa seduziu-me. Assim, inquiri o António sobre o tal amigo que passaria a ser meu “senhorio”, começando por lhe perguntar quem era (era reduzidíssimo o universo das possibilidades), e porque formulava o seu desejo de ‘partilha de um chão’, segundo uma forma tão estranha (porque mer-cantil) para os hábitos da esquerda festiva do pós-Mai68.

O António ignorou majestosamente a minha – legítima – curiosidade e pro-pôs-me “ir até lá” para eu conhecer o meu (provável) futuro senhorio, e com-binar com ele os termos do “trato”. Embarcámos no meu Dyane vermelho em direção a Sintra sob a batuta do António (tanto eu como a minha companheira não fazíamos a “mais pálida ideia” onde seria Massamá). Chegámos a um prédio do tipo Jota Pimenta (“a zona de influência da Reboleira” estendia-se já até ali, pensei eu), e fomos conduzidos, por um rapazinho de cara redonda e cabelo rapado à escovinha, a um quarto junto à porta do átrio de um andar no rés-do-chão.

O quarto continha apenas uma cama, onde se jazia um “velho” (eu tinha vinte e cinco anos, nesse tempo) que me interpelou “com voz cavernosa vinda do outro lado do mundo”. Exigia “referências”, ao que o António interveio di-zendo que eu era “engenheiro”, palavra-mágica adotada a partir daí pelo ex-cêntrico “senhorio” para, sem pronunciar o meu nome, me nomear com algum sentido ambiguamente pejorativo (quanto a mim, esse epíteto não tinha qual-quer poder ultrajante – em qualqual-quer sentido –, já que eu era fanático do Téc-nico em todas as suas vertentes, antes e depois de acabar o curso, vd. Pereira, 2019).

Enunciou devagar a quantia que pretendia que eu pagasse por dois quartos e “usufruto” da cozinha/casa de banho, mandando o rapazinho – seu filho, de-signado por Paulocas – mostrar-me as facilities, que só tinham paredes e al-guma sujidade. Quando regressei ao quarto, mostrou assombro por eu não ter discutido o montante do “aluguer” (em face dos locais, que seriam insatisfató-rios para um inquilino comum), pedindo um mês de renda e caução logo que eu disse que aceitava o trato.

Para comemorar, o velho propôs que fossemos ao Bolero, Bar de Putas junto ao Martim Moniz onde “apareciam” (quase todas as noites) alguns exemplares da Lisboa boémia desse tempo. Só na viagem para o Bolero é que me apercebi que ia viver com o Luiz Pacheco, que ‘conhecia’ de lenda e da leitura da sua desconcertante Crítica de circunstância (fig. 1).

Na ‘viagem’ para Lisboa, comecei a conversa pelo livro da fig. 1, que me tinha agradado sobre-maneira, já que estava a sofrer de fortíssimo enjoo relativamente a tudo o que cheirasse a neo-rea-lismo (e esse espartilho era violentamente profa-nado pelo Luiz, abrindo-me a porta para alguns

“autores portugueses” contemporâneos de uma linha surrealizante, quase desconhecidos para mim).

Mas o meu interlocutor não me deu troco nos meus avanços ‘literários’, cingindo a conversa aos aspetos práticos do aluguer que eu acabara de ce-lebrar, como se de um contrato se tratasse (senti que ele se sentia estranhamente (?) feliz no papel simétrico do que tinha sido obrigado a desempe-nhar durante anos, ao enfrentar os mais absurdos ditames por parte das proprietárias dos quartos onde vivera, e que o tinham humilhado “vezes sem conta”).

Passámos pela Beneficência para eu ir buscar um colchão e alguns livros de cabeceira, e dirigimo-nos para o Bolero, sob violentos protestos do Pacheco, que se queixava de um frio “siberiano” (para cabermos os quatro no Dyane, tive de abrir a capota, deixando sair o colchão como maleável sistema telescópico a apontar para as estrelas visíveis nessa lím-pida noite de fevereiro).

Parei à porta do estabelecimento (fig. 2), mas o Beringela – “estrela do novo cinema português” arvorado em porteiro – não queria deixar entrar o Luiz, alegando que ele se preparava para se ‘instalar’ lá dentro (e apontava para o meu colchão como material evidence das intenções pachecais). Só o Sr. Pinto, o dono do cabaré, é que resolveu o imbróglio, deixando-nos entrar (sem col-chão) e “responsabilizando-me” pela conduta do Luiz.

No interior do bar, subimos logo para o primeiro andar (janelas ao centro da fig. 2), reservado às comidas, a mando do Luiz (que se declarou “cheio de fome”). Aí funcionava a “zona privada” de um antigo bordel cuja “zona pública” s e situava no piso térreo, onde passou a

“atuar” um pianista cego, tra-zido pelo Sr. Pinto quando este tomou de trespasse o bor-del e o reformulou para “mais nobres funções” (nas suas pa-lavras).

Na grande mesa comum do primeiro andar onde nos sen-támos, estava à cabeceira uma quase septuagenária embone-cada, a Lourdes, que merecia o

Fig. 1 – O livro do Luiz que li há 50 anos (Pacheco, 1966)

Fig. 2 – Foto atual do prédio onde se encontrava o Bolero, no início da subida do Martim Moniz para a colina de Sant’Ana, pela Rua de São Lázaro (abaixo da pastelaria “A Caprichosa”)

A IDEIA – revista de cultura libertária

maior respeito por parte de todos (mesmo do Luiz, que me confidenciou – à quinta “cervejola” – ter sido ela a “tirar os três” ao Virgílio Martinho, um dos tais autores surrealizantes de quem ele não tinha querido ouvir falar à saída de Massamá, e cuja escrita considerava agora como “encantadora”).

A propósito de sexo pago a prostitutas, o Luiz – à enésima cervejola, cujos efeitos acumulados quebraram o gelo inicial – confidenciou-me que era coisa que nunca tinha feito, e regozijou-se estrondosamente quando eu “jurei a pés juntos” que também era coisa desconhecida para mim. Entrámos por esta via num jogo de cumplicidades, em que concluímos pertencer (à nascença) ao mesmo estrato da burguesia média/alta, cujo autoritarismo nos empurrou para uma rebeldia sem limites. A primeira – e fundadora – expressão dessa rebeldia consistia na recusa dos “namoros de conveniência” com as meninas da nossa classe. Naturalmente, a partir daqui, os nossos percursos divergiram, por evi-dente desfasagem temporal: na sua adolescência, a única maneira de fazer amor fora do casamento e da prostituição era seduzir com falsas promessas “criadas de servir ou fêmeas de menor condição” (1); quanto a mim, começara a ‘conhe-cer’ algumas partners que adotavam o modelo quase “europeu” de liberdade amorosa (também nas minhas viagens ao estrangeiro, surgiam sempre algumas ligações eróticas que tendiam a galgar a separação geográfica, com idas e vindas frequentes).

Vendo que o Pacheco tinha deixado cair a máscara de “senhorio” e estava a entrar em alguma consonância (alcoólica?) comigo, o António Ribeiro – que se sentia “pouco confortável” com o (des)encontro que tinha promovido – aban-donou os locais, desejando-me “boa sorte”. Chegou depois uma altura em que deixei de conseguir falar com o Luiz: entaramelava a língua embranquecida pelos “excessos da vida” e começava a interpelar quezilentamente tudo e todos à volta, sem qualquer “propósito”. Mergulhava a períodos regulares o longo nariz adunco de ave de rapina no copo de cerveja, e voltava ciclicamente a uma posição (quase) vertical, fazendo-me lembrar um “brinquedo científico” que tinha trazido da loja de um Museu de Londres, designado nos “gabinetes de curiosidades” por drinking bird (fig. 3).

Nessa altura, desci para o piso térreo para conversar com o Sr. Pinto, que também deixara o Luiz entregue à sua sorte no primeiro andar. O dono e se-nhor do Bolero – sempre de fato escuro, camisa branca e gravata (quase como um

“gato-pingado”, mas ligeiramente mais untuoso) – gostava de falar comigo ao fim da noite (quando as zaragatas come-çavam a esmorecer), pedindo-me conse-lhos sobre o modo como podia ajudar a filha a “tirar um curso” (achava que, para atingir tão desejado objetivo, eu tinha

armas secretas e impenetráveis que iam muito para além de dinheiro). Em troca, contava-me histórias mirabolantes sobre a noite de Lisboa desse tempo e – a propósito do Pacheco – aquela em que ele se apresentou à porta do seu

“estabelecimento” acompanhado pelo filho, que teria muito menos de dez anos

Fig. 3 – Logo e foto de um pássaro os-cilando em motto continuo para meter o bico num copo

e pouco mais de um metro de altura: quando obviamente lhe foi vedada a en-trada, o pai argumentou que se tratava de um mal-entendido, visto que o Pau-locas era anão!

Entretanto os fregueses iam saindo devagar, “empurrados” pelo Beringela, cuja figura de homeless contrastava com a do Sr. Pinto, que se queixava imenso dele, “por dar mau aspeto ao estabelecimento” (hoje, no momento da escrita, vejo-o em anamorfose temporal nas feições esboçadas na fig. 4, e não como aparece em algum “cinema novo português”).

Aproveitando a pista vazia e a embalagem do pianista cego que “estava tão bêbado que não via nada”, dancei entusiasticamente com a minha partner, ignorando com altivez (for-jada na altura) os impropérios das profissio-nais que se insurgiam contra a circunstância de “eu vir para o picnic com a sandes no bolso”.

Ao fim de meia hora, o Luiz desceu, desgre-nhado e agarrado a um jovem pimp que tinha ido lá acima para coletar junto da Lourdes o dinheiro que ela recolhera de todas as profis-sionais por ele protegidas (esse jovem era no-meado pelo Pacheco de “arrebentinha”, vocá-bulo que ouvi nessa noite pela primeira vez e que passou a constar no meu léxico).

Argumentando que o Paulocas tinha ficado sozinho em casa, o Luiz declarou que queria voltar para Massamá. E assim fizemos a via-gem para os subúrbios já de madrugada, quando as “pessoas já vinham trabalhar” (embora continuássemos de capota aberta, o Luiz já não se queixava de frio, cada vez mais enrolado no pimp por cima do colchão).

t O “ENGENHEIRO” DESVENDA ALGUM DO SEU PASSADO t (COM LIGAÇÃO A CERTAS TRIBOS VAGAMENTE PACHECAIS)

Fiz o liceu no Camões, onde o Pa-checo foi meu condiscípulo 20 anos mais velho, tendo ele nascido nas proximidades da Estefânia, mais de 30 anos antes de eu “parar” na pas-telaria da fig. 5.

Foi no interior da pastelaria da fig.

5, em plena Estefânia, que me senti vítima do primeiro ato explicita-mente repressivo praticado pelo re-gime de terror ditatorial-ascético que aqui vigorava no princípio dos anos 60: encontrando-me em enlevo amoroso com uma artista da António Arroio, fui interpelado por um agente em uniforme, que me levou para a Esquadra da Mouraria, onde fui “identificado”

Fig. 4 – Kevin Barry, escritor celta de hoje (Prose, 2020, p. 36), que vejo hoje na pele do Beringela e na ca-beça do Pacheco (2)

Fig. 5 – Tarantela

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e injuriado por “ofensa à moral pública” por um qualquer Comissário de Polí-cia (no seu papel de ‘padreca’).

Mas a minha experiência com o espaço dos Cafés como lugar de ambiguidade agridoce (em que o prazer da quente convivialidade se sobrepunha a uma vaga sensação de ameaça constante, em razão da putativa presença de Pides e que-jandos nas mesas vizinhas) vinha desde a minha meninice, quando o meu Avô – “Republicano Histórico” e maçon – me levava quase todas as tardes às suas tertúlias nos Cafés da Baixa. Discutia-se tudo nessas tertúlias, e eu era tratado como parceiro de pleno direito nas conversas. Lembro-me em especial de um facto que marcou fortemente o meu crescimento: estava uma roda de amigos a comentar o fim da guerra da Coreia, quando eu – depois de ter procurado em vão resposta no jornal – perguntei inocentemente quem tinha ganho a guerra (como acontecia nas histórias-padrão do Cavaleiro Andante). E como ninguém me respondesse de um modo claro (i.e. dicotómico), integrei esta omissão na minha maneira de ser criança, vendo sempre todas as coisas como um – mais ou menos diverso e ofuscante – caleidoscópio (o meu “brinquedo” preferido).

Durante os anos de formação (em todos os planos) em que andei no Camões, passava algum do tempo livre nos Cafés das imediações do Liceu: a Mimo e o San Remo, na Duque de Ávila, a Cubana, na esquina da Avenida da República com a Miguel Bombarda. Mas – primus inter pares – era o Monte Carlo que tinha a minha predileção, e onde “parava” com maior frequência (quotidianamente) e durante mais tempo (3/5 horas por dia/noite). Foi no Monte Carlo (fig. 6) que ouvi a lenda do Pacheco, antes de o encontrar de visu em Massamá. Mas, ao contrário do Pacheco, que usava os Cafés como “terreno de caça” (onde atacava – como predador amigável – as suas vítimas, ordenadas segundo o seu “valor”

alimentício, que se cifrava – literalmente – na sua bem conhecida “tabela” pe-cuniária), eu usava-os como field of leisure in an urban landscape, em consonân-cia com o arquipélago de sensibilidades da nebulosa constituída pelos compa-nheiros de cada fase da minha vida. Assim, posso dizer que, desde sempre, pertenço – num certo grau (3) – à tribo vaga dos AMANTES DE CAFÉS, agru-pamento amiboide de indivíduos à

maneira de Maffesoli (1988), que sentem com fragor a sinfonia irra-diada – sem direção ou sentido – pela convivialidade da mole hu-mana que se juntava nos grandes Cafés do século passado.

Esta tribo, que acolhia todas as nuances que Nietzsche explicitava na vida de cada um de nós, acom-panhou-me sempre com um ele-vado grau de pertença, e teve uma importância “fundadora” na mi-nha individualidade assumida-mente camaleónica.

Se quisermos olhar a complexidade da vida com dois modelos a duas dimen-sões, podemos ilustrar esses modelos segundo o esquema da fig. 7, onde sur-gem – lado a lado os símbolos “de oposição” e “de paralaxe”, que acabam por

Fig. 6 – Café Monte Carlo nos anos 60 (Pereira, 2019, p. 46)

conduzir a um referencial capaz de captar uma fração significativa da complexidade de que partimos (4).

Na vida do Pacheco (expressa em alguma da sua escrita) coexistiu claramente – naquilo que pude ob-servar em comparação com a mi-nha vida/escrita – o pragmatismo

instável em oposição ao sentimen-talismo consistente, a coerência unificadora em paralelo com a po-lifonia multiforme.

E surge assim uma nova tribo, mais etérea do que a anterior (por não ter suporte geográfico), que pode ser designada como tribo das CORRESPONDÊN-CIAS DESCONCERTANTES (“inaugurada” talvez por Rimbaud, com o seu ce-lebrado je est un autre). Esta tribo, que eu partilhava totalmente com o Luiz, acolhia também – de pleno direito – Patrícia Highsmith (5), uma escritora da nossa predileção que ainda hoje leio e releio para continuar a ver a vida como ela é, adjetivando-a de “pachecal” e/ou “highsmithian” na sua pluralidade.

Outro ponto de coalescência entre mim e o Luiz centrava-se em tudo o que fosse printed matter, sob todas as formas e ‘géneros’, a começar pelos livros. Os livros, por mais “respeitáveis” que os outros queriam que fossem, eram ‘maté-ria-prima’ para importantes operações (físicas) do Pacheco, que lhes dobrava impiedosamente as folhas, escritas e reescritas em todas as margens (e mesmo sobre o ‘miolo’ antigo, como um palimpsesto ao contrário). Tanto eu como ele exercíamos uma ‘volúpia destruidora’, à maneira daquele preceito da jurispru-dência romana que concluía com os direitos de fruendi et abutendi (e em que retirei o jus utendi inicial, já que posse era coisa que não nos interessava).

No seio da tribo dos seguidores da PRINTED MATTER em que me encontrava (em boa companhia), começava a emergir o heterogéneo, a miscigenação, a amálgama, num emaranhado de novos rizomas que glosavam as velhas chansons gaillardes, de estribilho bem expressivo: sans dessus-dessous et sans--devant-derrière.

Sendo toda tirania visceralmente avessa à palavra escrita, “não é de estranhar”

que a minha pertença à tribo dos seguidores da PRINTED MATTER fosse seve-ramente castigada pela repressão salazarenta. Assim, não “podendo” deixar de acompanhar, na sua aventura de “luta” contra o regime, o meu maior amigo do período 1961-1964 (no Camões e no

Técnico), passei a difundir – a seu su-ave pedido, mas sem grande entusi-asmo da minha parte – folhetos como o da fig. 8, atividade que a PIDE não podia tolerar (e em que me envolvi mais por amizade do que por convic-ção).

Fui então preso pela PIDE com pou- co mais de 18 anos (e sem qualquer in-teresse particular pela “política ativa”),

tendo passado 18 dias no Aljube, em absoluta solidão e sem papel nem lápis.

Soube depois que o Pacheco tinha estado uns anos antes no Limoeiro, situado

Fig. 7 – Janus, segundo os ‘gregos’ e Duck+Rabbit, segundo Wittgenstein

Fig. 8 – Pretexto para a minha perseguição pela PIDE (arquivo Ephemera)

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um pouco mais acima (mas invisível da minha cela), por “razões” tão absurdas como as que a PIDE tinha alegado para a minha prisão no Aljube, e depois em Caxias.

Finalmente, em 10 de julho de 1965, fui libertado de Caxias, onde alguma con-vivialidade com um segmento da população anti-salazarista inteiramente des-conhecido para mim (em especial, “os revoltosos do caso de Beja”) não conse-guia contrabalançar a disciplina que era imposta, no “interior”, pela hierarquia bolchevique da cadeia (e que “se sobrepunha” fantasiosamente – devido à sua

“força moral” – à dos Guardas).

No período 1966-70, abdicando alegremente de qualquer seita te(le)ológica, fui construindo uma persona libertária/hedonista/ cosmopolita, e comecei a aproximar-me – com ‘ardente paciência’ irónica – da tribo da REVOLTA IN-CONSEQUENTE, em que alternava (longos) períodos em Lisboa com algumas (mais curtas) estadias na Europa (onde ia ‘visitar’ os meus amigos exilados, que me deram a conhecer o Mai68)

Em Lisboa, fui-me deslocando para o Bairro da Beneficência, promovido a Quartier Latin da capital do país, e onde viviam alguns dos meus companhei-ros da Cidade Universitária. Um desses amigos, que dividia o seu (imenso) tempo livre entre os Cafés, Restaurantes e Bares do nosso Quartier Latin e os correspondentes “estabelecimentos” da Baixa, “desafiou” a nossa tribo para nos deslocarmos ao Cabaças (uma tasca situada na Braamcamp) para termos um encontro ‘preliminar’ (no sentido de alguma ‘mistura’) com outra tribo, a dos BÊBADOS DA BAIXA, que pairava na Baixa como mancha viscosa de alto teor alcoólico. Essa nova tribo, que se tornou uma ‘extensão’ da antiga (no sen-tido do e, e, e copulativo), era composta por um conjunto heteróclito de indi-víduos (ninguém perguntava ‘quem era quem’) com uma ligação subterrânea feita de estranhas cumplicidades, uma linguagem específica e uma atitude an-ticonformista e anti-carreirista em face da vida (como está descrito em Pereira, 2000, p. 222-224, a propósito de uma surpreendente analogia com um grupo semelhante que emergiu nos antípodas, pela mesma época). Uma cena típica desta tribo corporizava-se na atitude canhestramente blasée de alguém que chega a uma das bases (por exemplo, o Estádio, as Galegas ou o Bolero), após longa e inexplicada ausência – cuja causa ninguém indagava –, e diz secamente, sem sequer saudar os amigos: “Quem é que me paga um copo?”.

Entre os ‘membros’ desta tribo – com relações pachecais – encontrava-se o António Ribeiro, que descia da Politécnica com o seu primo, o Carlinhos Ra-mos Lopes, que se suicidou no final dos anos 60 por desgosto do seu pai ser fascista (e Diretor Geral dos Serviços Prisionais).

t A TURBULÊNCIA NA CALMARIA t (OU O QUOTIDIANO EM CASA DO LUIZ PACHECO)

O período de 18 meses que passei na terra pachecal pode dividir-se em dois tempos, irregularmente distribuídos numa paralaxe antagónica: o tempo das profundas (mas intersticiais) descidas aos infernos e o da bonança à bolina (sempre inquieta).

Obviamente que para o primeiro tempo contribuía, em primeiro lugar, a pre- sença nos locais de subconjuntos da tribo dos BÊBADOS DA BAIXA, aleatoria-mente selecionados, os quais – aos olhos da suburban população dessa época – semaient la pagaille a partir da casa do Luiz, espalhando-a depois pelas vizi-nhanças (especialmente pelas acanhadas tabernas que davam alguma alegria

ao – triste – suburban aglomerado). Com uma inveja benevolente perante os putativos “excessos” a que nos entregávamos, esta balbúrdia era criteriosa-mente dissecada nos seus mínimos pormenores por um certo funcionário da tipografia Bertrand – o Inspetor Geral, nas palavras do Pacheco (seguindo Gogol) – que vivia “lá em cima” e que, a pretexto de entregar a Revista do Tintin e alguns envelopes de ‘vintes’ com origem no Vasco Granja, vinha

ao – triste – suburban aglomerado). Com uma inveja benevolente perante os putativos “excessos” a que nos entregávamos, esta balbúrdia era criteriosa-mente dissecada nos seus mínimos pormenores por um certo funcionário da tipografia Bertrand – o Inspetor Geral, nas palavras do Pacheco (seguindo Gogol) – que vivia “lá em cima” e que, a pretexto de entregar a Revista do Tintin e alguns envelopes de ‘vintes’ com origem no Vasco Granja, vinha