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CRUZEIRO SEIXAS, EU FALO EM CHAMAS – alguns aspectos

Fernando J.B. Martinho

CRUZEIRO SEIXAS, EU FALO EM CHAMAS – alguns aspectos

EM MEMÓRIA DE ANTÓNIO FOURNIER

Em 1985, apresentei no Centro Unesco do Porto, no âmbito de um colóquio dedi-cado ao tema “A Língua Portuguesa em África”, uma comunicação essencialmente centrada em quatro poemas de Cruzeiro Seixas que Antonio Tabucchi incluíra na antologia de poesia surrealista portuguesa La Parola Interdetta, de 1971. Intitulava--se o meu texto “Cruzeiro Seixas: um Surrealista Português em Angola”, e dele perdi o rasto, só tendo sobrevivido um breve excerto inserto num álbum que a Cruzeiro foi dedicado em 1989, a título de homenagem pelo facto de ter sido con-siderado pelo Júri do Prémio Soctip «Artista do Ano». Dois anos depois da anto-logia publicada em Itália, Natália Correia escolheria igualmente poemas de Cru-zeiro Seixas para o volume O Surrealismo na Poesia Portuguesa, que, como é bem sabido, obedecia a uma concepção trans-histórica do surrealismo. Em 1986, a Ga-leria Gilde, de Guimarães, dava, finalmente, à estampa a colectânea Eu Falo em Chamas, em que Artur do Cruzeiro Seixas, conhecido no meio cultural português sobretudo como artista plástico, assumia em pleno a sua condição de poeta. Por voltas desse mesmo ano, teria cedido a Maria de Fátima Marinho cinco poemas para a sua tese de doutoramento, O Surrealismo em Portugal, vinda a público na IN-CM em 1987. Tanto estes como os insertos na antologia de Tabucchi se encontra-vam datados, e indicando como lugar de composição, Luanda, África ou Áfricas, concretamente em Angola, onde viveu entre 1952 e 1964 e realizou em 1953 e 1957 duas exposições que deram brado.

Os poemas da colectânea, sem indicação de data de composição, tinham a ante-cedê-los, duas epígrafes, uma de Artaud, a quem Cesariny dedicara um dos seus mais citados textos, incluído em A Pena Capital, de 1957, e outra de Herberto, que em 1980 dera a lume um folheto, fora do mercado, acompanhado de um hors-texte de Cruzeiro Seixas, igualmente dedicatário da plaquette. O espírito das epígrafes,

que, num caso, sublinha a radical incompreensibilidade da linguagem e, no outro, a confusão que atinge «mortalmente» as palavras, vai muito ao encontro do que Cruzeiro escreveu a André Coyné, autor do prefácio do volume, sob o título “O Fogo Agora Verde”, depois de se interrogar sobre a razão de publicar aquela «es-crita»: «O que desejo é que, a propósito, não me façam pensar em literatura, como me fizeram pensar em pintura». A recusa da literatura em Cruzeiro e nos demais surrealistas inscreve-se numa tradição que vem dos Românticos, que a opõem à Poesia, e que um Verlaine fixou exemplarmente no famoso fecho da sua “Art Poé-tique”: «Et tout le reste est littérature.» Um companheiro de Cruzeiro no Grupo Surrealista Dissidente, António Maria Lisboa, por sua vez, defendia que a obra literária não se esgota na «experiência estética», no «exercício estético», identifi-cando-se, antes, como «destino, sua afirmação e realização».

A África, acerca da qual Cruzeiro Seixas terá dito, não sem um assomo de ironia, conforme lembra Coyné no seu minucioso prefácio, que fora o seu «Paris», ou seja, o lugar de grande revelação e metamorfose erigido em mito pela sua geração, me-receu a Cesariny, no ano em que se realizou a primeira exposição em Angola do seu companheiro de aventura, as seguintes palavras: «A África é o último conti-nente surrealista. Tudo o que antecede, combate ou ultrapassa a interpretação es-treitamente racionalista do homem e dos seus modos tem a ver com um sentido surrealista da vida. A África goza do privilégio raro de não ter produzido nem o cartesianismo nem nenhum dos sistemas e acções baseados em sistemas de cate-gorias. A África conhece um mito que nós ignoramos.» Seja como for, é África que propicia a Cruzeiro o início da sua aventura poética em 1955, ano em que terão sido compostos os textos inseridos por Tabucchi na sua antologia de 1971. Escritos os poemas de Eu Falo em Chamas nesse continente livre do execrando cartesianismo, e objecto, num ou noutro caso, de alterações quando da sua publicação em livro, o certo é que o «Corpo» donde mana, afinal, o fluxo poético é que é a «Paisagem»

que nenhuma «moldura» está em condições de limitar. Nesse sentido, não deixa de assistir razão a Coyné quando se refere à África de Cruzeiro como um continente acima de tudo «mental». Tal não obsta, evidentemente, a que a sua poesia inicial não deixe de reflectir ambiências e paisagens africanas, se adentre no «coração da floresta», e por ela perpasse o fascínio do seu bestiário, do elefante à pantera, aos

«leões» e às «serpentes», e o próprio «fogo», num livro que teria atraído o Bachelard de A Psicanálise do Fogo, «pertence ao reino animal». É claro que, para um poeta da surrealidade, todos os países são, por assim dizer, interiores, «invisíveis» e pouco lhe importa que o «tigre» que, num dos poemas, vemos a olhar «lá do alto/

[…] a lua por dentro» não faça parte da fauna africana e lhe tenha chegado, antes, por via de um famoso poema de Blake, confesso precursor de surrealistas.

Em A Intervenção Surrealista, de 1966, Mário Cesariny, transcreveu os excertos de textos que Cruzeiro Seixas inseriu no catálogo da sua 1ª exposição em Angola, em 1953. As citações escolhidas, de autores surrealistas, ou encarados tradicional-mente como seus precursores ou ainda que o próprio pintor via como identificados com o espírito do surrealismo, destinavam-se a elucidar e a preparar o público para o tipo de exposição que se lhe ia proporcionar. Realizando-se o evento em Luanda, nada mais indicado do que começar com um fragmento de Aimé Césaire, criador da negritude, de que então se reclamavam alguns intelectuais angolanos que iriam estar na origem do nacionalismo literário, mais tarde, na base da própria luta de

A IDEIA – revista de cultura libertária

libertação nacional. A isto acresce que Breton descobre com entusiasmo, em prin-cípios dos anos 40, a poesia de Césaire e virá mesmo a prefaciar em 1944 Les Armes Miraculeuses, livro que marca a ligação do poeta da Martinica ao surrealismo. Se-gue-se-lhe uma citação de Lautréamont, que se tornará uma das mais célebres le-gendas acarinhadas pela modernidade poética: «La poésie doit être faite par tous, non par un.» Da lista de excertos faz igualmente parte uma não menos citada frase de Rimbaud: «La poésie ne rythmera pas l’action: elle sera en avant.» Curiosamente o fragmento de Henry Miller, que três anos depois publicará o seu fascinante en-saio sobre Rimbaud, The Time of the Assassins: A Study of Rimbaud, aparece trans-crito em francês, língua muito ligada aos surrealistas portugueses nos seus inícios, bem como os já referidos de Césaire, Lautréamont e Rimbaud, e um de Pascal e outro de Breton, citados no original. Um de Heraclito, cujo nome é afrancesado, aparece também nessa língua. A definição de surrealismo, dada no Manifesto de 1929, é traduzida em português, assim como um conhecido princípio da poética surrealista enunciado por Breton no seu Dictionnaire du Surréalisme.

Rimbaud marcou efectivamente Cruzeiro Seixas de modo especial, tanto que o cita num dos poemas: «Sim/ é inadiável saber por que Rimbaud/ trazia oito quilos de ouro à cintura.» E, de alguma forma, aquele que, em carta a Paul Demeny, de 15 de Maio de 1871, afirmou que o poeta era «um ladrão de fogo», subjaz à procla-mação que é o título do livro do poeta português, numa das leituras em que se desdobra, entre outras coisas, por via da duplicidade gramatical do segundo termo do enunciado titular. Mas o autor de Illuminations não é o único que o poeta con-voca para os seus textos. A presença de Camões é concon-vocada num outro texto, através de uma insólita imagem («O carburador de Camões/ avariou/ por falta de mundo”), a que, na sua parte final, não pode deixar de ser sensível um poeta para quem a imaginação é a única forma de superar a «falta de mundo». Ao mesmo tempo, o poeta, por intermédio do que foi também a sua actividade museológica em Angola e da perspectiva histórico-cultural que ela necessariamente implica, alude em sucessão cronológica a vários estilos de época, associando cada um deles a um diferente traço distintivo: «As estradas encalharam/ lá onde/ uns olhos góti-cos/ uma voz manuelina/ um gesto barroco da memória/ junto ao cais/ são o que ouço/ eternamente/ e a minha cabeça/ é um búzio febril.» O cais pode ser o cais de pedra da “Ode Marítima”, mas o Pessoa que acaba por se lhe impor é o autor do

“Menino da Sua Mãe” ( «É verdade que tu/ foste aparentemente como um país/

com quem tantas vezes fiz amor/ lado a lado de “inteiras e boas cigarreiras”?» ), no desterro que é a sensação de não haver possível «história» de consolo.

Decididamente Pessoa ocupava um lugar de destaque na sua memória literária.

É que vamos encontrar num inédito de 1961 revelado pelo número triplo de A Ideia, referente a 2019, um “Pequeno Poema a Angola”, em que de novo se percebe a lembrança do “Menino da Sua Mãe”. Mantém-se o clima de tragédia, só que desta vez o drama não atinge o jovem «louro» apanhado nas «Malhas que o Império tece», mas um «negro […] morto na/ calçada», no ano em que precisamente tem início a guerra em Angola. O título do poema segue o modelo do paratexto dedicatória e é dedicado a Angola, o que é um modo de responsabilizar «todos» pelo crime come-tido. O pronome «todos» é, de resto, intencionalmente repetido ao longo do texto, para bem salientar que ninguém está isento de culpa, desde os que mancharam as mãos de sangue aos que nada fizeram para impedir o sucedido e dele se alhearam

na indiferença. O próprio sujeito, integrado naquela sociedade, se interroga sobre a sua responsabilidade e sabe que faz parte de um «nós» que é testemunha da san-grenta reacção aos actos de revolta da população negra que se levanta contra a dominação colonial. A ligação ao poema de Pessoa torna-se visível também a nível lexical, por meio de dois termos comuns: a forma verbal «jaz» e o substantivo

«farda» ( «Um negro jaz morto/ na calçada// Foram polícias/ Foram soldados/ Foram civis// Fui eu?// Todos/ Fomos todos/ Que o matámos à porrada// Todos/ Fomos todos que o matámos/ Por trás de vidros/ Ou por trás da vista molhada/ Por trás de paredes/ No fundo de nós/ Ou com uma qualquer farda» ). Não surpreende, assim, que atingisse um ponto de ruptura relativamente à sua permanência em Angola e viesse a impor-se-lhe o regresso a Portugal. É disso que eloquentemente dá conta num passo das «notas autobiográficas» incluídas no álbum que à sua obra foi de-dicado em 1989: «Com o chamado surto terrorista em Angola, dificilmente poderia permanecer ali. Seria necessário definir-me, e essa definição era impossível ou não estava na minha maneira de ser. Era imediatamente necessário pertencer às “milí-cias civis”, matar, tudo o que me era completamente impossível. Foi um tempo terrível esse. Não tinha dinheiro para voltar para Lisboa e não podia fechar os olhos ao horror que se passava à minha volta. Enfim, convenci-me que não havia outra opção do que vender a minha colecção etnográfica. Vendi-a, e em 1964 re-gressei com meus Pais».

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