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Ana da Silva foi um dos últimos diálogos de Luiz Pacheco. Conheceram-se em 1994, quando o escritor vivia em Setúbal e mantiveram durante anos um diálogo próximo e fecundo, que levou Pacheco a dedicar-lhe “O que é um escritor mal-dito” (Memorando, mirabolando, 1995) e à intervenção de Ana da Silva na 3.ª edição de Exercícios de Estilo (1998), a última publicada em vida do escritor, com prefácio e cronologia da sua autoria. Aqui fica a apresentação de Ana da Silva e o relato do seu convívio com o criador do neo-abjeccionismo.

Onde e quando nasceu? Como passou a infância e quais os estudos?

Nasci em Santarém a 18/11/1968. Passei a infância em Santarém, vivia perto da Biblioteca Municipal de Santarém, que frequentava desde pequena, filha de professora e de professor de escola primária. Estudei em França, em Portugal e em Espanha.

Em que contexto ouviu falar de Luiz Pacheco e da sua obra?

Ouvi pela primeira vez falar dele numa aula de Literatura do Professor Álvaro Manuel Machado no Mestrado em Literaturas Comparadas Portuguesa e Fran-cesa, séculos XIX e XX, na Universidade Nova de Lisboa – FCSH. Ele, Ma-chado, depois convidou-me a escrever uma entrada do Dicionário de Literatura da Editorial Presença [sobre Luiz Pacheco].

Chegou a trabalhar a obra de Luiz Pacheco nos estudos superiores que fez?

Não. Apesar de o Álvaro Manuel Machado ter falado do Luiz Pacheco foi apenas porque lhe pareceu que seria um autor pelo qual eu me iria interessar, já que eu andava a ler muito Jean Genet, Boris Vian, Benjamin Péret, Sade, etc. De-pois, o que aconteceu é que, por minha iniciativa, acabei por fazer dois traba-lhos para duas disciplinas do Doutoramento em Ciências Literárias, mas nunca houve nem uma aula nem trabalhos a realizar sobre o Luiz Pacheco.

Em que ano e como chegou ao conhecimento de Luiz Pacheco?

Penso que o conheci em 1994. Depois de o Álvaro Manuel Machado me ter falado dele, comprei alguns livros, requisitei outros. Li tudo o que encontrei, gostei e fui à procura dele para Setúbal. Só sabia que ele vivia em Setúbal. Lá dei com a casa dele e fiquei um dia inteiro, sentada nas escadas do prédio, à espera que ele chegasse a casa, mas não tive sorte. Regressei a Santarém mesmo triste. Todavia, decidi deixar pendurado na porta um saco com pastéis de nata, rebuçados, latas de atum e mais algumas coisas que ele pede num dos seus textos sobre o artista, O Cachecol do Artista, e o meu número de telefone. Ele depois ligou-me e marcámos uma visita minha lá a casa dele. E assim foi.

Qual era o modo de vida do Luiz quando o conheceu?

Vivia sozinho no último andar de um prédio (quinto andar se não me engano), pequeno aparta-mento, com dificuldades financeiras, problemas respiratórios, poucas visi-tas. Gravava cassetes com textos para o Diário Selva-gem [ainda hoje inédito], dava entrevistas para di-versos periódicos, escre-via crónicas, queixava-se de amigos, de familia-res… Era um velho cons-ciente de estar a ficar ve-lho e capaz de morrer a qualquer momento,

desi-ludido com muita gente e muita coisa. Algumas pessoas da altura: Vitor Silva Tavares, Acácio Barradas, Serafim Ferreira, Lita, Maria do Carmo Abreu, Dulce, Fernando Mão de Ferro, o Cotrim da Editorial Cosmos.

Qual o papel na época de Dulce Fernandes na vida de Luiz Pacheco?

Não sei bem. Sei que ela se preocupava com ele, que o ajudava, que uma vez lhe ofereceu uma bola para fazer movimentos com a mão. Sei que ele me disse uma vez que tinha sentido pica por ela, acho que pelo cheiro das axilas. Dulce Fernandes era uma pessoa que se preocupava com ele, que gostava dele e de quem ele gostava.

Que levou Luiz Pacheco a deixar a Rua Camilo Castelo Branco?

Problemas de saúde. Em 1996, mudou-se para a Vila Máryah, lar de idosos que ele dizia ser lar de luxo para pessoas já fora de prazo de validade.

Até quando acompanhou a vida de Luiz Pacheco?

De forma muito próxima, de 1994 a 1999; depois zangámo-nos, e voltei a acom-panhar de forma muito menos chegada de 2003 até morrer.

Quais os motivos do afastamento? Como foi o reencontro?

Afastei-me porque cada vez que nos encontrávamos discutíamos muito em re-lação a autores/as de quem eu gostava, mas de quem ele não gostava nada.

Quando lhe disse que iria inscrever-me num doutoramento em ciências literá-rias e que iria fazer tese sobre o Álvaro do Carvalhal, ficou pior. Um dia, fui vê-lo a Setúbal e ele mandou dizer que não me recebia e eu, que tinha apanhado dois autocarros para lá chegar, nunca mais lá voltei até ao reencontro em 2003 (eu vivia na Vila da Marmeleira naquela época). Depois, pareceu-me que ele pensava que eu me estava a aproveitar dele de alguma forma e aí desapareci

Ana da Silva e Luiz Pacheco em 1995 no andar da Rua Camilo Castelo Branco (Setúbal),

fotografia de Vasco Rosa

A IDEIA – revista de cultura libertária

mesmo durante aqueles anos todos. O reencon-tro foi bom, mas senti que persistia uma má-goa minha e dele. Fui visitá-lo algumas vezes, mas já nada tinha a ver com a proximidade que tivéramos.

O que foi colaborar no documentário “Mais um dia de noite”

(RTP2)?

Foi entusiasmante. Eu adorava o homem, res-peitava o autor, fasci-nada pela obra, sentia que lhe devia muito. De facto, tinha tantos estu-dos de línguas e litera-turas, mas foi com ele que aprendi a escrever e a gostar de escrever.

Foi com ele que aprendi a desobedecer, mesmo em tempo de pandemias e estados de emergência.

Como foram os últimos dias de Luiz Pacheco?

Não sei. Só sei que fui ao velório, na Basílica da Estrela, e lá estava a bandeira do Partido Comunista a aconchegá-lo, como ele queria. Estava pouca gente e os sofás em volta do caixão, vazios. Pensei que a melhor forma de o velar seria ficar ali a ler-lhe alguns bons textos, dele, é claro, para ver se o aconchegava também: Os Namorados, A Velha Casa, O Teodolito…

Como vê a obra de Luiz Pacheco no quadro das correntes e escolas literárias da época e em especial dentro do surrealismo?

O Luiz Pacheco não se queria enquadrar em correntes e escolas. Aliás fazia tudo por isso. E de facto conseguiu. Não se enquadra. Ele escolheu outra via: a do abjecionismo, a da Contraponto. Dizia que não achava graça ao surrealismo, talvez porque, como oposição ao regime, não funcionava – embora fosse um avanço em relação ao neorrealismo, que se tinha acomodado. Ele tinha uma grande admiração pelo António Maria Lisboa, o Mário Henrique Leiria, o Ma-

Luiz Pacheco em 1995

andar da Rua Camilo Castelo Branco (Setúbal), fotografia Ana da Silva

nuel de Lima. Foi através do Luiz Pacheco que eu conheci o Lisboa. Ele ofe-receu-me um livro dele. Os outros já eu conhecia e gostava.

O que é o neo-abjecionismo para si?

No livro II de Saint Genet, comédien et martyr, intitulado «Première Conversion:

le mal», Sartre afirma que Jean Genet escolhe entregar-se deliberadamente ao mal sem limites, constitui uma ética do mal «avec des préceptes et des règles, des contraintes impitoyables». É uma forma de revolta contra a sociedade que o excluiu, mas, em vez de viver essa exclusão com vergonha, como é o caso da personagem Jean Rabe, em Le Quai des Brumes, decide vivê-la com orgulho.

Afinal, esta «reivindicação do mal» é uma forma de dignidade. No entanto, Sar-tre explica que, para Genet, não é o outro (ou seja, a sociedade) que é abjeto, a abjeção está nele próprio. Genet desenvolve a partir daqui a ideia de pecado como martírio e de santidade pelo mal. O que esclarece o título que Sartre deu ao seu ensaio Saint Genet, comédien et martyr. Alexandre Pinheiro Torres, com-parando O Libertino Passeia por Braga com Notre-Dame-des-Fleurs, explica: «Há pois uma santidade pela execração. Sartre chama a atenção (...) para o impulso que leva certos homens a procurar o desprezo e a buscar o julgamento dos outros homens. Ao lado da exemplaridade positiva da virtude, e, em contraste com ela, a exemplaridade negativa. Em Jean Genet, e segundo a análise sartre-ana, há uma vontade de identificação com todos os pecados do mundo. Como ponto culminante desta ética do Mal temos a ideia de que ela (da mesma forma que a ética do Bem) também implica uma Graça». Luiz Pacheco também se considera abjeto. Porém, há uma grande diferença entre ele e Jean Genet. Pri-meiro que tudo, a abjeção de Pacheco tem limites. Não há assassínios, execu-ções de assassinos ou traiexecu-ções de amigos da mesma natureza. Não há propria-mente uma ética do Mal em Luiz Pacheco e, se ele se quer abjeto, não cessa de mostrar que a sociedade é tão abjeta ou ainda mais do que ele. Há uma crítica e uma acusação constantes da sociedade abjeta. O que é O Cachecol do Artista senão um dedo apontado? Por que razão pede o artista um cachecol ou uma esmola no fim deste texto? Eis apenas dois exemplos muito significativos desta acusação; no primeiro, Pacheco acusa com ternura; no segundo, acusa com raiva:

1. «O miúdo que vende jornais naquela cidadezinha de província parada pacata patega é a primeira coisa que se vê na cidade, parada pacata patega. Quando chega o comboio da noite, a voz do pequeno ardina (que não tem pai nem mãe) corre pelas ruas e praças espanta a passarada bate nos prédios faz abrir portas e janelas fura a escuridão saem gritos dos seus olhos a sua cara de menina pede beijos e carícias uma ternura diferente as pessoas compram-lhe o jornal porque não podem comprar o silêncio do pequeno órfão e toda a cidade é um remorso inexplicável, inexpiável. Irás comigo, irmão, para a próxima jornada. Até ao Outro Lado, seremos dois.» (Os Namorados, p. 22).

2. «Engraçado!... São acérrimos democratas, indefectíveis republicanos [...]

oposicionistas intransigentes com o regime [...], mas na prática do dia-a-dia tão bons como os outros. Ou piores. [...] Tão repelentes por vezes. [...] Quantas

A IDEIA – revista de cultura libertária

vezes não os gramei com vontade de os mandar à merda e mandei mesmo! cha-mar-lhes estúpidos (...) sabujos, traidores, carneirada em jogo duplo, bem ins-talados e querendo instalar-se mais e mais (...) porque estando bem (embora devessem estar livres) desdenham ignoram deliberadamente a plebe proletária que são a grande maioria somos nós.» (O caso das criancinhas desaparecidas).

Como em Genet, verifica-se, em Pacheco, a ideia de fatalidade (o que não im-plica falta de liberdade, se bem compreendermos o caso de Oreste, em Les Mou-ches de Sartre): «O desprezo dos homens, que me importa? Sabiam que o meu destino era este (...) e não mo diziam por piedade» (Os Namorados). Ele procura reabilitar a beleza de coisas que a sociedade rotulou de abjetas, mostrando que afinal a abjeção é relativa, procura explicar porque se é ou se escolhe ser abjeto e procura mostrar que, em muitas coisas, a sociedade é tão abjeta como ele, mas é hipócrita e, por isso, abjeta por não ser livre (e livre ele é). A liberdade é, para Pacheco, um valor primordial, insistentemente rebatida nos Exercícios de Estilo e em toda a sua obra.

A cinco anos do centenário como vê o legado escrito de Luiz Pacheco?

O Plano Nacional de Leitura bem podia recomendá-lo e os programas curricu-lares de Português bem podiam aproveitá-lo, explorá-lo. Ainda que Luiz Pa-checo pudesse ter horror a qualquer tipo de utilização didática da sua obra, valeria a pena, porque não temos de fazer o que ele quer ou queria (sobretudo agora que está morto), porque se aprenderia a gostar de ler, a saber escrever melhor, a ter pensamento próprio, a ter a coragem de dizer o que pensamos, a discutir aquilo que não se discute, a lutar por valores e pela dignidade humana.

Não conheço nada melhor, em língua portuguesa, do que O Caso do Sonâmbulo Chupista, da editora que LP criou em 1950, a Contraponto, para explicar às cri-anças e jovens que o plágio é uma coisa muito feia e premiá-lo, mais ainda.

Talvez assim se pudesse combater eficazmente o sonambulismo e o chupismo de que muito boa gente padece, nas escolas e não só.♦

pormenor de barro de Maria Antónia Viana, 2016

O “ENGENHEIRO”

SEGUNDO LUIZ PACHECO (E VICE VERSA)