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DE MÁRIO CESARINY PARA MIGUEL PÉREZ CORRALES

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Miguel Pérez Corrales conheceu pessoalmente Mário Cesariny na década de 80 e chegou a fazer com ele uma folha volante da série Noa Noa em 1989, que não foi distribuída por faltar a legenda na fotografia de Corrales – um Cristo crucificado a ser beijado eroticamente por uma rapariga vestida de negro num cemi-tério de Madrid. Como quer que seja, o encontro entre os dois é anterior e data de 1979, altura em que Pérez Corrales esteve em Portugal e deparou com o livro Textos de afirmação e de combate do movimento surrealista mundial (1977), decisivo para confirmar a sua adesão ao surrealismo – “libro que más portas me ha abierto, después de la Antología del humor negro de André Breton”, diz ele algures em testemunho que me deu. A correspondência epistolar com Cesariny começou ainda em 1979 e espraiou-se no tempo ao longo dos anos.

Corrales vivia e vive nas ilhas das Canárias, então em Santa Cruz de Tenerife, e os encontros pessoais com Cesariny não eram fáceis e por isso a epistolografia teve um papel importante nas relações de ambos. É provável que o endereço de Cesariny tenha sido obtido logo em 1979 por meio de Francisco Aranda, então a viver no seu principesco andar da Rua Carlos III em Madrid – só viria a falecer 10 anos depois em 20-7-1989 – e que vivera em Lisboa na década de 50, onde foi casado com Salette Tavares e conheceu Cesariny, que lhe chegou a traduzir um livro, Arte de morrer, e a inclui-lo numa das suas antologias do surrealismo em Portu-gal. Dessa correspondência damos a conhecer uma longa carta de 17-10-1987, anterior pois à folha volante Noa Noa, e do maior interesse para se perceber a presença do seu autor no emaranhado das relações ibéricas, que tanto passavam por Aranda, com o qual chegou a pensar um segundo tomo dos Textos de afirmação e de combate do movimento surrealista mundial, tomo este dedicado em exclusivo ao surrealismo ibérico, portu-guês & espanhol, como pelo círculo de Gigón (Enrique Carlón e outros) e depois o de Madrid (Castro, Rojo e muitos outros), como ainda por Philip West, que faleceu em 1997 mas vivia então em Saragoça e colaborara já com Laurens Vancrevel na revista Brumes blondes, como ainda pelo meio canarino, onde continuavam vivos alguns históricos dos anos 30 que haviam recebido em Tenerife André Breton, Benjamin Péret e Jac-queline Lamba. Sobre o volume feito a meias com Aranda, e de que a primeira notícia de que damos nota aparece numa carta ao brasileiro Sergio Lima em Maio de 1978 – “José Francisco Aranda e eu (...) encon-trámos o título para o livro que andávamos congeminando há uma certa série de meses, talvez anos: Surre-alismo ibérico...”, a presente carta dá copiosa notícia. Só a parte espanhola, da autoria de Aranda, acabou por ver a luz, em 1981, e com o título Surrealismo español. Muitas outras obsessões do Cesariny dessa década e das anteriores (Antonio Tabucchi, Luciana Stegagno Pichio, Jorge de Sena, António Pedro, José-Augusto França) passam por esta carta, que tem ainda um valor autobiográfico nada desprezível. A viagem às Caná-rias na companhia de Francisco Aranda (e ainda de Cruzeiro Seixas e Manolo Rodriguez) ocorreu em Maio de 1973 e não em 1974 como o subscritor relata – traído pela memória. Corrales após a morte de Cesariny organizou com Perfecto Cuadrado, de quem porventura ouviu falar pela primeira vez nesta carta, uma digna homenagem ao grande insubmisso da Lisboa noctívaga, que se materializou na publicação dum valioso nú-mero da revista La Página (n.º 102, 2013, pp. 124), todo ele consagrado a Mário Cesariny. Agradecemos ao destinatário a amabilidade de nos ceder e autorizar a publicação da carta. Na transcrição seguiu-se o prin-cípio da fidelidade ao original, transcrevendo erros (assinalados todavia com sic), sublinhados (embora não em duplicado) e outras singularidades da grafia e do invólucro da missiva. [A.C.F.]

e Cesariny a Pérez Corrales

[Com envelope; frente: M. Cesariny/ R. Basílio Teles, 6 -2º Dtº/ 1000 Lisboa/

Portugal (canto superior esquerdo); Exmº Snr./ Miguel Perez (sic) Corrales/ Car-rera, 23, 3º C/ 38201 La Laguna/ Tenerife // Canárias/ Espanha (canto inferior direito); avião (canto inferior esquerdo); carimbo datado de 17de Outubro de 1987, 1200-Lisboa; selo em carimbo de 45 escudos.]

Lx. Outubro 87 Para Miguel Pérez Corrales

Querido Amigo

São verdadeiramente preciosos os, as publicações suas e de outrém que me tem enviado. A cabeça agradece, e o coração.

Cada vez me felicito mais de não ter publicado, como em princípio dos anos 70 havia combinado com o Francisco Aranda, um livro conjunto, meu e dele, em que eu intentaria “tratar” do surrealismo aqui, e Aranda do mesmo lá, isto é, em Espanha.

Este convénio nasceu dos vários anos de convívio que tivemos em Lisboa, desde os princípios dos anos 50. Nesse entre tanto [sic], ele publicou várias coi-sas interessantes, e até importantes, sobretudo para êle [sic], e eu cheguei a traduzir ou a ajudar a “corrigir” o português em que saiu aqui em Lisboa o livro dele, “Arte de Morrer”, impresso em 1957. Regressado a Espanha, ele começou uma actividade que a mim me pareceu, e é, de grande vulto, como o livro “Os Poemas de Luis Buñuel”, que saíram aqui em Lisboa, em Lisboa, em 1974, tra-duzidos e prefaciados por mim, primeira edição mundial de que o P. Aranda nunca fala, em Espanha, com medo não sei de quê, talvez da própria sombra. / Seguidamente, ele publicou o bem notável “Luis Buñuel, Biografia Crítica”, que teve tradução inglesa e holandesa, esta última proporcionada pelo meu amigo e alto poeta Laurens Vancrevel, o editor da revista surrealista, em Ams-terdam [sic], “Brumes Blondes”.

Tudo isto, e uma bela amizade, me levaram a aceitar o projecto do que seria, pois, um livro escrito a dois com título, talvez, “O Surrealismo em Portugal e em Espanha”. Quando, porém, o Pepe Aranda começou a enviar-me a parte que seria dele, em folhas dactilografadas que me remetia à medida que ia es-crevendo, fiquei aterrado com a posição, ou posições, em que ele se colocava para “dar” o surrealismo espanhol, e acabei com esse projecto, vindo ele a pu-blicar independentemente a parte dele, naquele livro lamentável, confusionista absoluto e castellanista [sic] doente. Aquilo não tem campo nem razão, e ainda por cima me sai dedicado, a mim que, mais de uma vez lhe escrevera, dizendo-lhe (pois que ele me ia enviando o original em progresso), ainda que com es-tranheza e alguma cautela, que aquele belo estilo universitário e à primeiro Morris não poderia contar com a minha companhia, mesmo cruzada por uma fronteira. Quando o Domingo Perez Minik publicou o “Faccion Surrealista de Tenerife”, ele escreveu-me dizendo que aí, em Tenerife, Minik e mais quem fôra [sic] ou ainda estava, não sabiam nada do surrealismo, o que já toca as raias da tonteria madrilena [sic]. Ainda por cima, o Aranda nem pode alegar desco-nhecimento involuntário do surrealismo tinerfeño [sic] pois foi ele próprio,

A IDEIA – revista de cultura libertária

Aranda, que, em 1974, durante uma estadia minha em Madrid, me levou à vossa ilha, onde conheci Eduardo e Maud Westerdahl, Pedro Garcia Cabrera e Do-mingo Perez Minik, entre outros. Também estavam por lá António Saura e (Ma-nuel?) Hernandez, expondo em salas distintas. Com P. Garcia Cabrera ainda tive alguma correspondência depois e, de Maud Westerdahl, um bilhete amá-vel...

Porque o ocupo, eu, a si, com esta história louca, tão totalmente negativa? Ah, é que me incomodou, e ainda hoje incomoda, isso do Pepe Aranda resolver dedicar-me um livro contra o qual estou, verdadeiramente! Da Maud Wester-dahl, sei que, quando saiu o livro, telefonou para Madrid, casa do autor, e in-sultou-o de tudo e de mais alguma coisa. Eu, não fiz nada se não confirmar-me a sorte que tive em não me misturar com aquela treva cerrada.

E será também porque é você, Miguel Perez Corrales, quem me envia, tão generosamente, os documentos vivos (continuam vivos!) da pequena ou grande história do Surrealismo español [sic] – o qual, na península (como vocês dizem com bastante graça...) nunca existiu...

Há agora um amigo de um amigo meu, um tal, simpático, snr. dr. Perfecto E.

Cuadrado Fernandez, de Palma de Mallorca, conhece?, que anda resolvido a estudos sobre o surrealismo português e que, em carta recente, me sugere um livro a fazer de colaboração com êle [sic] (ou, se é demais... uma antologia do dito surrealismo aqui). A verdade é que tenho um medo horroroso dos abismos, e já escaldado fui por um outro fulano, talvez bastante mais idiota, este, de nome António Tabucchi que em anos idos me pediu ajuda, eu dei, e o resultado foi um académico salsifré refrito à italiana compósito que saiu na Enaudi em 1971 com nome “La Parola Interdetta – Poeti Surrealisti Portoghesi” e sequên-cias inteiramente confusionistas, uma delas, talvez a mais espazida [sic], a tetra-logia da angústia que caracterizaria os poetas surrealistas portugueses... como se o surrealismo, português ou chinês, pudesse estar nisso! Este o primeiro dos tais, doutor e tudo, que é parvo, não se importa de o ser (como se importaria?

dada a aplicação nos trabalhos e imbecilidade trabalhosa congénita, acaba de ser nomeado Director do Instituto de Cultura Italiana em Lisboa. Não é bom?) e também escreve muito, ou faz escrever, por intermédio da esposa, também grande doutora, Maria José Lencastre (Lancastres) e com o alto patrocínio de outra doida, esta de mais gabarito (mais sacana, portanto) (mas mais triste), a Luciana Stegagno Picchio, que não é da Universidade de Roma porque ela (é a universidade de Roma – pena não ser algo maior ainda! – o Vaticano!!! –) tam-bém escreve muito, ou faz escrever, dizia, sobre o Fernando Pessoa que é o que está a dar agora a febre à península. Nos interstícios do entanto, atirou também cá para fora, desde a península italiana (Pisa) uns Cadernos Portoghesi, dos quais um dedicado ao Surrealismo Português (Portoghesi) que não passa de uma matilha de cães açulados contra mim (“fascista”, ou quase, etc.).* Os ladra-dores, por acaso portugueses, como o tal Almeida Faria, foram apanhados um tanto a escuro nas imediações da cidade eterna, ou mesmo dentro de portas, como um que andava a trabalhar na rádio, perdão, na já citada universidade (um tal João Nuno Alçada) e outros que não digo “mais” por serem o “mesmo”

gem Geneagica das Estrelas 2, e Miguel de Carvalho,2020

– atacados como o estavam todos de marxismo agudo ou preventivo, depois do 25 de Abril (já lhes passou, a todos, essa mania: deixou de render o que ao tempo parecia que ia dar). (Minto: há um que conserva – tem de conservar por-que foi coisa má no tempo do Salazar. Allá ellos! – ).

Ora eu, dizia, depois de tais etapas, acha que quero embarcar nas seguintes?

Aliás, o dr. Perfecto Cuadrado, num dos trabalhos em que teve a bondade de atirar-se ao surrealismo português – com melhor inteligência e melhor infor-mação, diga-se – saiu-se com a ideia de uma similitude entre o que acontecia aqui, nos anos 40, e o que aconteceu em Madrid com o post-ismo do senhor Carlos Edmundo Ory, nos mesmos 40. Mas o post-ismo, que o dr. Cuadrado acha surrealista, não tem nada a ver com o dito surrealismo, a não ser que, por charla e estravagância, queira alguém dizer que o único post-ismo que parece possível foi-o e é-o o Surrealismo, desde 1924, mas sem Madrid, sem Ory e sem Cirlot, não é? Aliás, este Ory parece que, tempo depois, começou de escrever umas grandes odes, tipo Claudel (risquei: católico, não é preciso pôr).

E é o que por ora, com sereno abraço, lhe escreve e envia o seu / Mário Cesa-riny

*O cão maior em fila, um tal mui conhecido e prolixo Jorge de Sena, que sempre culminou alguns instantes de lucidês [sic] (devia ser iluminação celeste:

ele é católico e pouco cristão: onze filhos) com quantidades de posições malu-cas, com a primeira, já nos anos 40, a misturar o Eclesiastes com o André Breton (coisa que em Portugal deu e ainda dá bom resultado sonoro e cadeira proces-sional) e, nos mesmos 40, e, com a ajuda de outro ecuménico, este do gozo puro, o “surrealista” António Pedro, queria à viva força penetrar e ficar no Grupo Surrealista que inicialmente e infelizmente formei e felizmente abandonei al-gumas horas depois. Queixa-se então ali (nos C. Portoghesi) o Sena (que entre-tanto morreu nos U.S.A.. Acontece!) que o surrealista é êle [sic] e o mais são histórias, que nunca percebeu por que não o deixaram (eu não deixei) entrar para o grupo, etc. / Que vida! / Mário

Outro cão sem projectos a maior mas só miniatura de pote chinês porém de vasta vasta bibliografia andante é o dr. França, que substituiu a ignorância pelo ficheiro monumental que tem e com o qual se desloca pelo mundo como ou-trora os Reis com as relíquias. Mas esta carta já vai muito longa e talvez por

demais ao “correr da pena”. Pare! / Mário Cesariny

El folleto que le envio es dedicado al França ese (Dr. José-Augusto França), actualmente director del Centro Gulbenkian en Paris. Siempre la calamidad!

de Cesariny a Pérez Corrales

CARTA [INÉDITA]