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CAPÍTULO III – PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DA ALIMENTAÇÃO

1. IMIGRANTES BRASILEIROS

1.1. PRÁTICAS

1.1.2. RELAÇÃO COM O ALIMENTO

O GOSTO NA CONFECÇÃO, NA QUALIDADE E NA ATITUDE

Na confecção dos alimentos sobressai “os grelhados” como método de eleição de cozinhar qualquer carne.Muitos dos entrevistados referem-se aos grelhados através do

termo churrasco enunciando-o como uma das suas confecções preferidas. O termo churrasco referido por este grupo, reporta-se a toda a carne assada no grelhador (fogão ou carvão), enquanto os portugueses normalmente ligam o churrasco à carne frango. O frango é apreciado sob a forma de churrasco, assim como a picanha, que são também referências comuns de alimentos consumidos.

Alguns discursos acentuam que na confecção de carne, a cozinha brasileira usa menos temperos do que a portuguesa.

“ (...) a nossa é menos temperada. Aqui tem mais tempero, vocês usam mais alho, aquelas coisinhas, os cheiros, mais temperos (Ronaldo).

Ou seja estamos de novo na problemática do gosto, com o factor cultural que orienta as escolhas alimentares. As práticas de consumo não podem ser compreendidas a partir da noção racional de satisfação das necessidades, são antes um produto do gosto do indivíduo que é um resultado complexo das condições sociais da sua existência e da respectiva trajectória social que cada um vai percorrendo (Bourdieu 2007).

Um aspecto que se relaciona com o gosto na sua acepção objectiva e na subjectiva é a referência à qualidade dos alimentos.

A carne e o peixe consumidos em Portugal apresentam, segundo os entrevistados, qualidade muito inferior relativamente à do país de origem.

“(...) a carne de vaca daqui, não tem a qualidade da que a gente costuma comer lá no Brasil. Lá é muito melhor! (...) -É mais tenra, não tem o mesmo sabor. É muito melhor! (M.).

A carne aqui não tem o mesmo sabor. Não tem a mesma qualidade. Lá era morta na hora, a carne era de melhor qualidade, o gosto é outro. Mais tenra. Aqui é como borracha. Aqui come carne congelada”(C.).

“ A qualidade de carne do Brasil, não se compara com a de Portugal. A nossa é mais tenra e tem mais sabor. Dá gosto comê-la, e aqui a mais gostosa é a biológica que é muito cara e a ela nós podemos chegar” (V.).

“uma das grandes diferenças encontradas entre a alimentação portuguesa e brasileira é “na carne. A vossa é mais importada. E perde o sabor. A nossa carne tem outro sabor. É melhor. Mas agora já estou habituado. Estou há dois anos em Portugal e nunca comi peixe (....). Por causa do cheiro lá era diferente! (A.)

A valorização dos produtos alimentares do país a que os imigrantes pertencem talvez resulte de um juízo etnocêntrico, que por vezes emerge no ser humano. É difícil saber se os produtos a que se reportavam tinham origem em animais produzidos e pescados no país de acolhimento ou, pelo contrário, eram produtos importados. Ainda assim, a melhor qualidade evocada, não pode deixar de ser assinalada como componente emocional, subjectiva, que interfere na relação que os imigrantes estabelecem com a sua alimentação.

Atitude das Pessoas Perante o Alimento

Os entrevistados realçam uma clara distinção entre a sua atitude e a dos portugueses no que respeita à relação com o alimento. Nomeadamente valorizam a tranquilidade e o tempo despendido no acto de comer.

“Nós gostamos de comer mais descansados. Não a correr” (D. e M.2).

A importância da mastigação na percepção do gosto foi relacionada com a atitude de comer calmamente. De facto, os brasileiros focam a presença demorada do alimento na boca, como factor importante para obter maior prazer numa refeição.

“Você tem que morder na comida para achar o sabor” (A.)

“A gente tem que mastigar a comida, para a saborear” (M.)

“Sopa triturada, nós não gostamos tanto, gostamos dos alimentos cortados aos pedacinhos para podermos mastigar e encontrar o sabor da comida” (C.)

Estes e outros registos semelhantes espelham o argumento de Velez, e Gracia (2003), sobre o processo fisiológico que o organismo acciona para a detecção dos sabores. O início deste processo está nas papilas gustativas que reconhecem substâncias químicas nos alimentos e as traduzem em estímulos que se transmitem a nervos cranianos específicos. Do seu argumento extrai-se que a mastigação dos alimentos participa desde logo na percepção do gosto, uma vez que “ de acordo com os movimentos da boca, os estímulos misturam-se e é a sua inter-relação que produz um determinado sabor” (Velez, e Gracia 2003: 92). De facto, os imigrantes brasileiros racionalizam à sua maneira esta teorização. Mas novamente do ponto de vista

sociológico, esta ênfase colocada na atitude representa uma aprendizagem cultural. Na verdade, o processo fisiológico é universal. Mas a atitude de o valorizar é brasileira.

Os brasileiros adaptam-se com facilidade aos pratos portugueses, mesmo sendo fiéis aos seus pratos e mantendo o gosto pelos alimentos do seu país: À excepção de uma entrevistada que perante a questão: “Da comida portuguesa, quais os pratos de que gosta mais?” responde, “para ser sincera não gosto. Gosto mais da minha”, todos os outros participantes referem uma fácil adaptação à comida portuguesa.

Pratos emblemáticos da cozinha portuguesa, como o bacalhau, cozido-à-portuguesa, maranho e feijoada são os mais apreciados pelos Brasileiros. Mas tal não invalida que estes imigrantes se desprendam ou abandonem os gostos por alimentos a que foram habituados, como já se demonstrou.

A adopção de pratos típicos do seu país é uma prática nos imigrantes brasileiros.

Moqueca de peixe, picanha, tutu de feijão, feijão tropeiro, carne de vitela cozida com legumes, “costolado” grelhado, farofa, bóbó de camarão são alguns dos pratos [Anexo 5]

frequentemente confeccionados. Principalmente em ocasiões especiais, esses pratos são reproduzidos podendo sofrer algumas alterações em relação a determinadaos alimentos que não existem em Portugal. Alguns dos alimentos consumidos, característicos do país de origem são: óleo dendê (óleo de palma), óleo de coco, pirão de dendê, farinha de mandioca, banana da terra (banana pão) e fubá (farinha de milho). Os efeitos dos hábitos e tradições podem expressar-se com maior ou menor força. Os alimentos referidos marcam uma diferença acentuada entre a cozinha do grupo em questão e a portuguesa. Esta diferença não se restringe àquilo que, por vezes, é chamado de “contornos alimentares” (por exemplo, os molhos e as especiarias). Embora Navarro (2005:44) refira que “os efeitos das tradições sobre os distintos tipos de alimentos (…) em geral afectam menos as componentes básicas da dieta, por exemplo o tipo de gordura utilizada, que condiciona os sabores, os hidratos de carbono (trigo, arroz, etc.), mas penetram mais facilmente nos ‘contornos’ da alimentação:

bebidas, aperitivos, saladas, acompanhamentos, molhos, etc.”, neste caso, não é exactamente isso que acontece. O efeito da tradição alimentar dos imigrantes brasileiros ultrapassam os aspectos colaterais da dieta, revelando-se também através de pratos característicos do Brasil. De facto, o uso de alimentos oriundos do Brasil e a confecção de

determinadas receitas culinárias reproduz e renova a memória de uma tradição, que é própria de um país, de uma região ou de uma família e, simultaneamente, cultiva o gosto.

São utilizadas várias formas para fazer chegar produtos alimentares brasileiros que não se encontram em Portugal. Leia-se a resposta dada à pergunta “como obteve o pirão de dendê?”

- “Tenho lá em casa porque minha mãe mandou para mim. (...) Até aqui a única oportunidade que eu tive foi uma amiga minha que veio a Portugal e trouxe. Mas veio com pouca coisa. Trouxe banana da terra, É uma banana, bem grande, que não se come crua; ou se cozinha ou se frita. É muito bom! É uma banana que há no continente mas não é igual à nossa. Vem do Equador. E aqui, se chama banana-pão.

Mandei vir mais o quê? Azeite dendé (aqui não é igual), maracujá (o nosso é grande e bem amarelo)! Também farinha de milho “fubá". Serve para fazer cuscuz. O meu marido não gostou mas eu adoro!” (O marido é de nacionalidade portuguesa).

Todavia não se pode ignorar a alteração a que alguns dos pratos típicos da cultura brasileira estão sujeitos, devido à ausência de alguns dos produtos alimentares que fazem parte das receitas culinárias.

O discurso seguinte evidencia a implementação de estratégias que permitem melhoria na sobrevivência dos imigrantes, por exemplo, a prática de uma agricultura destinada a autoconsumo. Esta prática favorece a acessibilidade a determinados produtos cultivados em função, não só da necessidade mas também do gosto.

“E: - As principais mudanças resumiram-se aos legumes e fruta, porque as outras coisas encontro tudo. Vou a Coimbra encontro tudo, aqui também, no pingo doce também há alguns produtos. Mesmo assim já há muitas coisas que eu trouxe e plantei lá (referia-se ao local onde habita).

MC: - Então tem uma horta. É isso?

E: - Tenho e grande!

Tenho legumes que tínhamos no Brasil e galinhas. O custo me facilita por isso” (J.)

De uma forma geral, quando o cônjuge é português praticam-se os dois tipos de alimentação, por vezes de forma sistematizada.

“Faço pratos do meu país, o meu marido que é português gosta muito. Na minha casa é assim: 2 vezes/semana: comida portuguesa. Fora disso fazemos comida brasileira” (J.)

Em síntese, a análise dos dados revela a importância do factor identitário que se espelha, nomeadamente, na adopção da categoria ‘nós’/‘vós’, referência permanente nos discursos. Do ponto de vista das práticas, verifica-se que os hábitos alimentares do país de origem tendem a manter-se, justificados pelo gosto. Aí se inserem opções de produtos mais presentes (massa e feijão), de estrutura das refeições (menor presença da sopa) e diferenças de cozinha (textura da sopa). Mistura-se na apreciação do gosto, a apreciação de menor qualidade dos alimentos portugueses o que em certos casos justifica a opção.

Nas famílias mistas, está mais presente a adopção de hábitos alimentares portugueses, em paralelo com os hábitos da cultura de origem. Outra diferença que aparece como marcante é a atitude face ao acto de comer, considerado, o da cultura de origem, como mais calmo e de maior respeito para com o alimento.

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