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AS REFEIÇÕES COMO CONTEÚDO E ESTRUTURA

CAPÍTULO III – PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DA ALIMENTAÇÃO

1. IMIGRANTES BRASILEIROS

1.1. PRÁTICAS

1.1.1. AS REFEIÇÕES COMO CONTEÚDO E ESTRUTURA

A Sopa

No grupo dos imigrantes brasileiros, segundo os entrevistados, a sopa apresenta diferenças no que se refere aos ingredientes, à textura e ao papel que assume na refeição.

Relativamente aos ingredientes que constituem a sopa, a carne é elemento que está quase sempre presente.

A carne pode ser cortada aos pedaços ou inteira, algumas vezes é alourada ou frita previamente, outras vezes é introduzida na panela juntamente com os restantes ingredientes. Barthes (1957: 54) evidenciou a mitologia sanguínea da carne, quando aborda “o bife com batatas fritas” revelando o que se esconde por detrás do seu consumo – o carácter nobre, luxuriante da carne. Também Silva (2008), ao tratar o consumo de carne pelas pessoas que fizeram parte do seu estudo, baseada no mesmo autor, evidencia a importância da representação social da carne como alimento mais conceituado e de prestígio cultural, na construção do gosto.

A base da sopa é semelhante à portuguesa no que ser refere a alguns legumes, como, cenoura, abóbora, repolho, entre outros. Porém, tem particularidades inerentes aos hábitos do país de origem, nomeadamente, no que se refere à predominância de certos alimentos como sejam, feijão, soja, mandioca e outros alimentos ricos em fibra, e à quantidade de alguns ingredientes introduzidos. “ A maior diferença, é na quantidade de

massa que a gente põe” (C.). São vários entrevistados a acentuar a introdução deste ingrediente na sopa.

Estes e outros discursos semelhantes confirmam o papel relevante do conjunto de informação sensorial, na definição do gosto. O tempo de contacto do alimento e os movimentos na cavidade oral são aspectos importantes na discriminação do gosto. Mas o gosto extravasa a dimensão química e fisiológica resultante da interacção dos alimentos com os componentes sensitivos e a dimensão eléctrica enviados ao cérebro (ao doce desenvolve-se uma resposta hedónica positiva e ao amargo desenvolve-se uma resposta hedónica negativa (Keller e Steinmann 2002)). Para além das influências genéticas, existem as adquiridas. O gosto é resultante de um processo de aprendizagem e como tal produto de um conjunto de interiorizações que se vão operando no indivíduo (Bourdieu 2007).

A exposição (o contacto com o sabor) influencia a nossa palatibilidade, de modo a familiarizarmo-nos com o sabor. O gosto é assim definido em função dum conjunto de critérios que permitem identificar o alimento nas suas qualidades organolépticas mas na actuação desses critérios estão presentes a dimensão afectiva, simbólica e social. São todos estes elementos inter-conjugados que contribuem para a construção do gosto individual. Tal como afirma King et al. (2005) a sensação do gosto é definida em função de experiências prévias de quem o experiencia. O gosto é uma categoria cultural modelada na socialização e profundamente interiorizada a ponto de parecer inata e individual (Bourdieu 2007).

O gosto por uma sopa de textura mais consistente é um dado marcante.

“Gosto mais da nossa sopa. A vossa você mete a varinha mágica e tritura. Nós não.

Os alimentos são cortados aos pedaços e você mastiga. Você tem que morder na comida para achar o sabor” (A.)

“A nossa sopa é diferente. Não trituramos nada. Nós gostamos de mastigar” (C.)

Tentou saber-se se a não trituração da sopa, estaria relacionada ao facto das famílias que se pronunciavam nesse sentido não possuírem varinha mágica (por restrições económicas, por exemplo). A ser assim esta tendência advém de uma prática imposta. Com esclarecimento do assunto ficou a saber-se que a varinha mágica é dispensável nos processos culinários, porque não se utiliza. Por isso, não faz parte dos electrodomésticos de muitas famílias brasileiras. Ao contrário, o liquidificador é um dos

electrodomésticos considerados indispensáveis e por isso comum em todas as famílias brasileiras, segundo um informante, mas principalmente usado para fazer sumos.

Mas, a sopa é entendida como um constituinte dispensável nas principais refeições. Se comem o segundo prato, a sopa tende a ser suprimida dessa refeição.

Nas palavras de Maria, “o almoço é completo e às vezes um doce de abóbora”, no entanto a palavra “completo” não significa a inclusão de sopa.

Na prática, a frequência do consumo da sopa às refeições, parece estar relacionada com o tempo de permanência e a proximidade do relacionamento com a sociedade portuguesa. Uns, os que se encontram há menos tempo em Portugal continuam a manter o hábito do país de origem. É o caso de R. que consome

“Ao jantar, normalmente uma sopa e um lanche, outras vezes um lanche mais reforçado, outras vezes uma salada e uma refeição mais ligeira”.

Outros integram o hábito que persiste no povo português, de comer a sopa nas principais refeições. São sobretudo imigrantes brasileiros que constituíram família com portugueses, ou imigrantes que convivem mais de perto com famílias portuguesas. São geralmente os que se encontram no país de acolhimento há mais tempo.

C. e J., ambas casadas com portugueses referem respectivamente:

Nós lá só comemos sopa à noite, quando comemos sopa, já não comemos mais nada e aqui eu faço um sacrifício, mas enfim!... É o hábito daqui, e como estou cá tenho que me habituar a isso (C).

No Brasil a gente não tem hábito de comer dois pratos (uma sopa e o segundo).

Ou é sopa ou é frango com arroz, ou é um bife com uma salada

Porque tenho tempo e comodidade de consumo, comemos um prato só. Por exemplo salada, um bife. Ora, com isso já consegui perder peso. Há um ano quando morava na casa da minha sogra comia a alimentação que ela fazia (....).

(J.).

Alimentos predominantes

Os alimentos privilegiados nas principais refeições são o feijão e o arroz (hidratos de carbono complexos), e as carnes de vaca e frango (principais fontes proteicas).

“Nós utilizamos o feijão e o arroz todos os dias. A carne é mais carne de frango e de vaca” (M.) “

“a carne que mais consumo é de vaca” (T.)

“A gente no Brasil quase não consome carne de porco, e eu acho que a carne de porco engorda muito, e não tem a quantidade de proteínas e vitaminas que a gente precisa, (...). Mas vocês aqui comem muita carne de porco, que eu não gosto muito”.

Eu acabo, comendo quando vou à minha sogra, mas em casa não como (C.).

Uma outra razão para a preferência de carne de vitela em detrimento da carne de porco, relaciona-se com o menor custo da carne de vitela no país de origem, onde era consumida com elevada frequência.

A preferência pelo feijão e o arroz é repetida, várias vezes, na mesma entrevista acentuando o gosto por estes dois alimentos. Contudo, o seu maior ou menor consumo, é-nos dito, deverá ser relativizado ao extracto social a que o consumidor pertence, dado que se relaciona, novamente, com o preço dos alimentos.

O feijão e o arroz são de novo destacados como alimentos predominantes quando se procurou saber como é que os imigrantes se adaptaram à comida portuguesa.

MC: - Gosta da comida portuguesa?

E: - Sim.

MC: - Quando veio para Portugal adaptou-se bem à comida portuguesa?

E: - Sim, mas, no início custa um pouco porque não tem o feijão.

MC: - Mas nós aqui também temos feijão.

E: - A tradição das pessoas daqui é diferente. Lá em todas as refeições, não falta o arroz e o feijão, acompanhados.

Porém, apesar de não existirem alguns dos alimentos, ou existindo, serem inacessíveis (devido ao preço e à distância entre Castelo Branco e as cidades onde os produtos podem ser encontrados), os hábitos alimentares praticados anteriormente no seu país, de um modo geral mantêm-se:

A - Alterou os hábitos alimentares desde que chegou a Portugal?

E: - Não.

MC: - Então, isso significa que não deixou de comer alimentos que comia no seu país, encontra aqui todos os alimentos que comia no Brasil?

E: - Sim. A gente acha aqui, tudo. Bom, tudo..., Por exemplo quiabo, não achei aqui nesta zona. “Alterei a nível de determinados alimentos como por exemplo feijão preto (cá só há de lata), farinha de milho e alguns frutos”.

De salientar aqui que, a cozinha brasileira tem por base a cozinha portuguesa, com outras duas grandes influências: a indígena e a africana. Mas existem inúmeras variações, desde os ingredientes a nomes e combinações, por exemplo, no caso do cozido, que em Portugal é riquíssimo em derivados de porco e, no Brasil, farto em legumes e carne de vaca (Krause e Mahan 1991).

As práticas alimentares são ainda contextualizadas à proveniência regional. O Brasil é um país geograficamente multifacetado e que sofreu múltiplas invasões e influências. No aspecto geográfico, fica entre a linha do equador e a zona temperada pouco abaixo do trópico de capricórnio ou seja é um país de enorme diversão com variedade de climas e características. Por exemplo, uma extensa costa atlântica favorece em algumas regiões a actividade pesqueira bastante diversificada que influencia o gosto dos habitantes.

E., um informante do Norte do Brasil que reside há quatro anos em Portugal falou precisamente de alguns destes aspectos.

E: -“Há diferenças no próprio país. No Sul, em Santa Catarina estão lá os descendentes dos alemães, e no Paraná a maioria são descendentes de Italianos, que quando foram para lá cultivavam os produtos. Foram para cultivar café mas depois aquilo não deu muito bem então, cultivaram os seus produtos. Então no Paraná e em Santa Catarina os produtos são muito europeus.

A alimentação do Brasileiro do Norte é, como direi, mais primitiva. Tem muita influência dos índios. O próprio brasileiro é muito mais acomodado. Ainda há muitas zonas que eles vivem da caça e da pesca.

Depois os produtos alimentares também variam. Por exemplo o açaí é uma fruta típica que só tem no Norte. É nativa. O forte dela é das ilhas. É muita energética. É usada nas academias, misturam aquilo com sumo. As crianças com 12 anos já sobem a estas árvores. É uma árvore como a palmeira pequenina, lá mesmo em cima tem dois cachos com frutos pequenos, os frutos têm que ser colhidos maduros.

E aquilo é colocado no tacho com água para amolecer e eles amassam com a mão.

Já existem máquinas, para tirar aquela especificidade. Nas aldeias eles passam por uma peneira e sai aquela nata, aquele grosso”.

(…)

“E: - O feijão nem sempre é muito consumido de igual modo. Vai de família para família. Quando é uma família numerosa, ela consome feijão diariamente porque é uma comida rentável, económica. Então eles usam a carne seca, que é uma carne prensada, é como o presunto aqui, vai à salmoura e cortam pequenos e colocam no

feijão e com um volume maior, fazem com caldo, com molho porque se divide melhor, porque fica mais rentável.

MC: - Portanto podemos dizer que o consumo varia em função da condição económica da família.

E: -Sim, mas não é só. Varia também muito com a região.

Nós no Norte, como temos muita facilidade de arroz e de legumes, e também no peixe e na carne, já não é comum em todas as famílias consumirem feijão todos os dias. Já no sul, que não existe tanta facilidade na aquisição desses produtos, o feijão se consome mais. O sul também é mais frio e por isso se consome mais.

Tu vais a uma região onde as famílias trabalham muito na agricultura, então nessas famílias comummente é o arroz com feijão que é uma comida que lhe dá resistência (...)”.

Em relação aos aspectos sociológicos, convém lembrar a rápida miscigenação entre índios, portugueses e negros africanos e entre os imigrantes que vieram para o Brasil a partir do século XIX. Famílias italianas, alemãs, portuguesas, espanholas, e de outros países introduziram os seus hábitos alimentares nas regiões onde se estabeleceram.

Segundo G., um informante,

“como há facilidade de encontrar aqui os alimentos eles aqui (referia-se aos imigrantes brasileiros) mantêm os hábitos. Principalmente em determinadas regiões do interior Brasil têm uma certa resistência aos ovos. Quando comem são fritos. Cozidos e em cremes têm uma certa resistência Têm também uma certa resistência ao peixe cozido, normalmente fritam primeiro o peixe. Eles têm influência africana”.

A fruta pode não integrar as refeições do almoço e jantar, sendo preferencialmente comida nos seus intervalos.

“Quando como fruta, não é tanto à hora da refeição é mais nos intervalos, levo para o trabalho e aí como”(T.)

“Normalmente não como fruta às refeições” (G.)

Aqui não como tanta fruta como comia lá. Porque aqui é mais frio e não apetece tanto” (J.)

Estrutura de refeições

No que se refere ao horário, os planos alimentares [Anexo 4] revelam refeições estruturadas com base num horário socialmente determinado, ocorrendo nos períodos 7h,30-9 (pequeno-almoço),12-14 (almoço), 16,30 (lanche) e 19-21 (jantar).

A maioria dos entrevistados brasileiros refere fraccionar as refeições 4 vezes ao dia, pequeno-almoço, almoço lanche e jantar, mas alguns situam-se apenas em 3 refeições. Neste caso, a refeição omitida é o lanche manhã. O fraccionamento das refeições segundo um horário rígido tem uma história muito recente na vida humana.

Poulain (2002) salienta como as três refeições se impuseram como norma no século XX, referindo-se ao processo de distinção social, ao mito da igualdade e ao pensamento higienista sanitário. Presentemente, tudo está construído de forma a dar a impressão que o pequeno-almoço, almoço, lanche, jantar e ceia foram, na história da humanidade, refeições que apareceram estruturadas segundo a representação que tende a ser actualmente difundida nas sociedades mais evoluídas (eivada de uma matriz predominantemente sanitarista). O número de refeições que surge evocado como prática corrente nestes imigrantes, resulta em grande parte, desta construção social.

A constituição das principais refeições nem sempre obedece à estrutura normativa, em Portugal (e em muitos outros países), país de acolhimento, traduzida por uma prato de sopa, um prato de peixe, ou carne, e fruta. Principalmente na mulher, quando a refeição inclui carne ou peixe surge a tendência para prescindir da sopa.

Também na mulher, existe alguma preocupação em tornar o jantar uma refeição mais leve.

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