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Voz feminina ameríndia e escrita do espaço.

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Academic year: 2022

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Voz feminina ameríndia e a escrita do espaço The Amerindian woman voice and the writing of space

Rita Olivieri-Godet¹ Submetido em 17 de setembro e aprovado em 7 de novembro de 2016.

Resumo: Este artigo analisa a dinâmica espacial da narrativa Kuessipan, de Naomi Fon- taine, articulando as dimensões material e simbólica do espaço. A escolha desta perspec- tiva busca evidenciar o olhar singular da autora sobre o processo de interação desigual entre povos ameríndios e sociedade canadense e, ao mesmo tempo, destacar as estreitas relações entre história familiar e coletiva que fundamentam a identidade dessa voz femi- nina ameríndia.

Palavras chaves: Espaço. Reserva de Uashat. Voz feminina ameríndia. Naomi Fon- taine. Kuessipan.

Abstract: This article analyzes the spatial dynamics in the novel Kuessipan, by Naomi Fontaine, by articulating the material and symbolic dimensions of space. The choice of this perspective is guided by the singular insight of the author in the unequal interaction process between Amerindian people and the Canadian society, while emphasizing the strong relationship between family and collective histories which found the identity of this Amerindian woman voice.

Keywords: Space. Uashat reserve. Amerindian woman voice. Naomi Fontaine. Kuessipan.

Je viens de là-bas, qui, plus je m’en éloigne, plus il m’habite. Peut-être que l’ailleurs m’a façonnée, mais c’est ce là-bas qui me rappelle qui je suis.

Naomi Fontaine, Je viens de là-bas².

As produções literárias e críticas do Quebec das duas últimas décadas indicam um interesse crescente pelo espaço. A emergência da voz ameríndia no sistema literário quebequense contribui com um novo olhar e ajuda a ampliar e reconfigurar a articulação entre as dimensões material e simbólica do espaço. Os textos de autores ameríndios contemporâneos expõem os vínculos históricos íntimos dos povos autóctones com seu território em relação à ordem cosmológica e social que os caracteriza. Tais textos questionam formas segregacionistas de apropriação social do espaço resultantes do processo de interação desigual entre povos ameríndios e a sociedade canadense e revelam:

a relação dos antepassados com os territórios tradicionais de seu povo; a redescoberta memorial e/ou experiencial desses territórios pelas novas gerações; as experiências

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de desapropriação, exílio e confinamento em reservas, ou aquelas de inserção e/ou marginalização no espaço urbano. Do não-lugar³ às estratégias de caça e pesca ilegais na busca de forjar um espaço próprio habitável4, da recusa a confinar-se na reserva (FONTAINE, Naomi) ao desejo de não deixá-la (MESTOKOSHO, Rita), do sentimento ambivalente de pertencimento (FONTAINE, Naomi; KANAPÉ FONTAINE, Natasha) ao enraizamento no território e em suas tradições (BACON, Joséphine; MESTOKOSHO, Rita), emanam dos escritos ameríndios múltiplas formas de habitar o espaço.

As escritoras citadas – Naomi Fontaine, Natasha Kanapé Fontaine, Rita Mestokosho e Joséphine Bacon – são de origem innu: “Elas levam a literatura innu como levam a terra5”, escreve Monique Durand. Mulheres ameríndias tomando a palavra através da escrita é um fenômeno curioso na cena literária quebequense. Em um belíssimo artigo sobre essa presença “resplandecente” da escrita feminina ameríndia no Quebec, Monique Durand afirma:

Enquanto muitos homens de sua comunidade se fechavam em seu espaço e em sua cabeça, prisioneiros da história dolorosa e das drogas, tentando se encontrar e lutando contra seus demônios obscuros, as mulheres ousavam abrir as janelas e lançar ao planeta palavras que haviam escrito na febre e na urgência. Deixando a seus homens a cultura oral, contos de ontem e canções de hoje, elas escreveram livros e lançaram as bases de uma literatura innu que se produz diante de nossos olhos e assume, a cada dia, uma nova envergadura. Sua chegada à escrita é resplandecente, e cada uma já vem aureolada por uma audiência internacional6.

Vamos examinar os recursos estilísticos e simbólicos utilizados por Naomi Fontaine, nascida em 1987 e representante de uma nova geração de escritoras ameríndias, para escrever o espaço. Kuessipan7 narra o destino trágico do povo innu, as consequências da perda de territórios, a vida diária na Reserva de Uashat, dois anos após outro romance quebequense – Uashat, de Gérard Bouchard8 – resgatar sua história e mostrar o dia a dia da reserva nos anos 1950. A escolha da escritora para apreender esse espaço é fundamentalmente poética, ao contrário da abordagem histórica e sociológica de Bouchard. Considero, no entanto, que esses dois textos bem diferentes se complementam, no mínimo porque permitem cruzar um olhar externo com uma visão interna sobre um mesmo espaço e em épocas diferentes. Nosso objetivo não é fazer um estudo comparativo

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entre as duas obras, objeto de uma publicação futura, mas apenas destacar a atualidade da reflexão sobre o espaço da reserva na literatura do Quebec, e as temáticas correlacionadas que tangem tanto ao status dos ameríndios quanto ao processo de interação entre ameríndios e sociedade nacional.

Contrastando com a figuração de um espaço mortífero da reserva em Uashat, de Gérard Bouchard, a narrativa de Kuessipan sugere as pulsações da vida que brotam dos escombros do território precário de Uashat, pelo filtro de uma subjetividade que dele se apropria. Mesmo que, como afirma Naomi Fontaine, “a reserva não seja um lugar9”, sua narrativa não elimina a utopia de seu horizonte. Sua prosa poética, de tendência minimalista e fragmentária, produz retratos da população innu, quadros da paisagem da baía de Sept-Îles, das florestas e dos territórios tradicionais, recorrendo, às vezes, a pequenos toques impressionistas cujas qualidades estéticas expressam uma sensibilidade singular (K, p. 21); outras vezes, apela para passagens descritivas que evocam instantâneos do quotidiano (K, p. 58) ou redelineiam a topografia da Reserva de Uashat (K, p. 53), aludindo a elementos de sua dura realidade (K, p. 40).

O território referente: a Reserva de Uashat

Uashat (que significa “Grande Baía”) é o nome de uma reserva indígena innu, criada em 1906, na região da Côte-Nord, no Quebec. Em 1949, para afastar os índios da cidade de Sept-Îles, o governo federal construiu outra reserva, a Mani-Utenam (Village de Marie), para onde iria deslocar toda a população innu de Uashat e obrigá-la a nela se instalar. A obra de Gérard Bouchard, Uashat, cuja trama se situa no início da década de 1950, resgata esse período conflituoso e a resistência dos ameríndios a essa mudança.

Uma parte deles recusou-se a mudar para a nova reserva e ficou em Uashat, integrada ao planejamento urbano de Sept-Îles em 1966. Com o crescimento desta cidade, Uashat encontra-se hoje dentro de sua malha urbana. Apesar dos 16 quilômetros que separam as comunidades de Uashat e Mani-Utenam, elas compartilham o mesmo Conselho e formam um único Grupo, cujo nome oficial é INNU TAKUAIKAN UASHAT MAK MANI- UTENAM. Uashat e Mani-Utenam estão situadas no município regional do condado de Sept-Rivières, no Quebec, que pertence à região administrativa da Côte-Nord. Os dados

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abaixo, extraídos do site oficial do Conselho Grupal dessa reserva, computam 3.728 habitantes, 53 % com menos de 25 anos10.

DADOS UASHAT MANI-UTENAM

Em francês La Baie Village de Marie

Superfície 117 hectares 527 hectares

População 3.728 no total

52 % com menos de 25 anos Localização No extremo oeste da cidade

de Sept-Îles 16 km ao leste de Sept-Îles Línguas Língua principal: innu

Segunda língua: francês

Antes da chegada dos europeus, os povos innu ocupavam o imenso território que beira a Côte-Nord e o rio Saguenay até a altura de Schefferville. Primeiros habitantes da Côte- Nord, os innu viviam da caça, da pesca e da coleta de pequenas frutas, passavam o inverno no interior e voltavam para o litoral na primavera. A partir de 1535, quando Jacques Cartier entrou no rio Saint-Laurent e batizou Uashat de Sept-Îles (na realidade, são seis ilhas) e a utilização desse território pelos colonizadores provocou profundas mudanças no habitat dos indígenas em função de atividades diversas e sucessivas através dos séculos, como a pesca do bacalhau, o comércio de peles, a fabricação de óleo de baleia, a exploração florestal, a indústria da madeira e a construção de uma barragem hidroelétrica. Porém, uma das principais causas da expropriação dos territórios ameríndios tradicionais foi a atividade mineira, que se intensificou em meados do século XX e atraiu as companhias americanas de minério para a região. Foi o caso da Iron Ore Company, que construiu uma ferrovia para transportar minérios do interior, à altura da atual Schefferville, até o porto de Sept-Îles. Datam dessa época (fim dos anos 1940/início dos anos 1950), os conflitos entre a cidade e a Reserva de Uashat, que deixaram vestígios até hoje, assim como a criação da Reserva de Mani-Utenam. A instalação na Pointe-Noire da baía, em 1992, da Aluminerie Alouette, uma das fábricas de alumínio mais importantes no mundo, inclui-se nessa dimensão histórica de ocupação do território dos innu. A modificação das fronteiras entre o Homem e a natureza trouxe grandes prejuízos aos vínculos estreitos que os indígenas mantinham com seu território.

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Experiência e ficção do espaço

O foco da narrativa Kuessipan é esse espaço referencial de uma reserva situada a 1.100 quilômetros da cidade de Quebec, à qual se liga pela estrada 138, mas que ladeia a malha urbana de Sept-Îles – espaço submetido a regras administrativas complexas do sistema federal canadense e penosamente integrado ao modelo de modernidade ocidental.

Originária de Uashat, a autora morou na reserva até os sete anos, quando se mudou com a família para a cidade de Quebec, voltando lá com frequência. Depois de estudar Ciências da Educação na Universidade Laval, em Quebec, Naomi Fontaine decidiu exercer sua profissão de professora de francês junto a jovens innu da Reserva de Uashat. Ela trabalha na escola de ensino secundário Manikanetih, em Uashat, mas mora em Sept-Îles, fora da reserva. Em um encontro em Sept-Îles11, em maio de 2016, a autora compartilhou conosco sua visão crítica sobre a reserva, que ela vê como um lugar que força a população innu a viver um tanto isolada, em uma espécie de gueto que impõe um modo de vida a seus habitantes e os impede de ver o que se passa fora dali e de assumir seu destino: “Não é o governo que vai me dizer onde devo morar”, declarou ela.

A obra foi muito bem acolhida pela crítica e ficou entre os dez finalistas da edição 2012 do Prêmio dos Cinco Continentes da Francofonia. Kuessipan é um texto híbrido, onde se entrelaçam poesia, conto, esboço de ensaio e autobiografia. Uma prosa poética inspirada na vida da autora. A narrativa fragmentada explora as relações complexas entre escrita e experiência, renunciando à narração linear dos fatos e deixando aflorar, em uma linguagem poética, quadros que remetem ao dia a dia da Reserva de Uashat. Mesmo que para a autora “a reserva não seja um lugar”, sua escolha para apreender esse espaço é fundamentalmente poética. Sua escrita depurada contrasta com a de Gérard Bouchard, que se dedica a reconstituir, pela ficção, o quadro sócio-histórico dessa mesma reserva.

No livro desse grande intelectual quebequense o universo ameríndio surge pelo olhar de um estranho à comunidade, aquele de um estudante de sociologia. A experiência do lugar pelo personagem Florent Moisan vai transformar a relação que ele mantém com o espaço, evoluindo da rejeição dos primeiros contatos com a Reserva de Uashat à compaixão. O romance de Bouchard ressalta a desestruturação do sistema sociocultural dos innu, as tensões existentes entre eles e os habitantes de Sept-Îles, a desapropriação dos territórios

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ameríndios tradicionais, as políticas indigenistas vigentes no Quebec dos anos 1950 e a extrema precariedade material do lugar. A escolha de Bouchard para revisitar a história da Reserva de Uashat, nessa metade do século XX, é a da dualidade do confronto entre dois sistemas culturais, baseando-se em um discurso histórico e sociológico coerente.

Os elementos relativos à desestruturação do sistema sociocultural dos innu também estão presentes na narrativa fragmentada de Naomi Fontaine, mas de um modo sub-reptício. O discurso sociológico e engajado não tem lugar nessa obra, que se distancia do romance de Bouchard ao se recusar a elaborar argumentos racionais e inteligíveis para nomear a realidade. Ela escolhe uma visão intimista trazida por uma voz que viveu a experiência da Reserva de Uashat e que procura decodificar esse mundo, instaurando uma atmosfera sensível por meio de um conjunto de quadros que reinventam, às pinceladas, o sistema cultural innu, no passado e no século XXI.

A oposição espacial entre Uashat e a cidade ou entre Uashat e os territórios tradicionais, muito marcada por uma visão dicotômica na obra de Bouchard, é aqui atenuada, dando lugar a fronteiras mais fluidas, a espaços de convivência e trocas, ainda que as tensões e os conflitos continuem presentes. As temporalidades não são mais vivenciadas como antinômicas, mas como simultâneas: novos costumes permeiam a vida da comunidade devido às relações com o universo urbano contemporâneo e convivem com rituais tradicionais, que ocupam um lugar privilegiado no texto na medida em que simbolizam a resistência cultural do povo innu e sua capacidade de voltar às origens.

A palavra innu do título, Kuessipan, quer dizer “para ti”, “a tua vez”. Podemos interpretá-la ao mesmo tempo como uma dedicatória, como um ato de transmissão, de herança e como o desafio que a voz autoral deseja ver seu filho, que encarna o simbolismo de renovação desse povo, aceitar. A narrativa está estruturada em torno de quatro partes – “Nômade”, “Uashat”, “Nutshimit” (que designa o interior, os territórios tradicionais) e “Nikuss” (palavra innu que significa “meu filho”), que revelam o modo de vida do povo innu, as suas transformações de geração em geração, a transmissão de um savoir- faire e de uma certa relação com o território, apresentados como referentes identitários essenciais, e sua capacidade de se reinventar e de se apropriar do modelo ocidental apesar das dificuldades.

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Uma voz/via nômade

A primeira parte, “Nômade”, já delineia os contornos do projeto de escrita da voz autoral desde a primeira frase da narrativa, “Inventei vidas”. O sujeito da enunciação atribui a si o poder da imaginação. Inventar, embelezar, recusar a dor, é todo um programa que visa a fundar um discurso estético, apresentado no incipit do romance:

Inventei vidas. O homem do tambor nunca me falou de si. Tramei a partir de suas mãos gastas, de suas costas curvadas. Ele murmurava uma língua velha, distante. Declarei saber tudo dele. O homem que eu inventei, eu amava. E essas outras vidas, eu as embelezei. Eu queria ver a beleza, eu queria criá-la. Desnaturar as coisas – não quero nomear essas coisas – para delas ver apenas o tição que ainda queima nos corações dos primeiros habitantes12.

A alusão ao efeito fecundante e regenerador da escrita pode ser percebida nesse movimento que se volta para o ancestral manifesto no simbolismo do “tição que queima”.

O sujeito da enunciação busca no pathos proporcionado pela aventura da linguagem um meio de expulsar o estado de melancolia em que está submerso em razão da dura realidade.

Ele se apropria do real progressivamente e o torna visível pelo filtro das suas impressões e pelas lacunas de seu discurso. O que move a voz autoral e constitui sua salvação é, ela admite, seu “instinto de nômade, na busca incessante de um estado de graça” (K, p. 108).

O texto desvela, assim, sua lógica imaginária que valoriza a condição de ser móvel e de poder frequentar física, cultural e simbolicamente os mais diversos espaços. Embora atraída pelo que está além, a voz autoral não renuncia às suas referências culturais, mas busca, sobretudo, o direito de escolher seu destino e de construir seu próprio percurso ao encontro do outro.

Portanto, é graças à subjetividade singular da voz autoral que adentramos na comunidade innu e temos acesso a fragmentos de vida da narradora, a elementos esparsos que remetem à dura realidade da reserva, a rituais tradicionais, à pesca e à caça nos territórios dos ancestrais, à topografia da Reserva de Uashat, à memória familiar. Os retratos de vidas de personagens anônimos constituem uma série de quadros que compõem um mosaico da existência desse povo. Contrariamente a uma tradição da literatura ameríndia, essa voz não pretende falar em nome de seu povo nem se dirigir a ele exclusivamente. Ela

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se dirige a todos, como sugere um dos breves capítulos da narrativa construído em torno de uma enumeração poética, a dos destinatários de suas cartas:

Cartas para meu bebê. Para minha mãe. Para minha irmã mais velha. Para Deus. Para meu pai. Para Lucille. Para Jean-Yves. Para a agente de educação do Conselho Grupal de Uashat e de Mani- Utenam. Para os pais do meu ex. Para meu ex. Para mim mesma.

Para minha irmã menor. Para o primeiro-ministro do Quebec. Para meu irmão. Para Gabriel. Para Luc, primo do meu avô. Para Nicolas D. Para William, mas não o príncipe. Para este mundo cruel. Para meu povo. Para o pai de M. Para as pessoas tristes. Para as crianças do futuro13.

Frases curtas e nominais, próprias do estilo da autora, sucedem-se num ritmo sincopado e amplificam a impressão de diversidade. O inventário dos destinatários de suas cartas abarca tanto pessoas do círculo mais íntimo e familiar da narradora, fornecendo de passagem elementos de sua biografia, quanto a esfera pública: as simples menções ao Conselho Grupal – instituição indígena responsável pela administração da Reserva Uashat e de Mani-Utenam – e ao primeiro-ministro do Quebec, aludem a um problema de fundo, o da autodeterminação dos ameríndios e de sua dependência ao governo federal.

A escolha estilística do texto é a construção elíptica, a sugestão e não a explicitação do sentido: trata-se, antes, de evocar e compartilhar com o leitor sensações imprecisas que emanam das experiências felizes ou dolorosas, sem jamais recorrer ao sentimentalismo.

A trama interrupta da narrativa tange à impossibilidade da voz autoral de preencher as falhas da memória e a incompletude da história, de nomear a falta de afeto, a violência, a solidão. É nesse modo oblíquo de narrar e de se narrar que se encontra a beleza e a força desta “joia literária14”.

A figura do nômade atravessa todo o texto de Kuessipan: “Nômade: gosto de conceber esse modo de viver como natural” (K, p. 22)15. Em um primeiro nível de leitura, a voz autoral refere-se às relações com o território, aquelas dos ancestrais e seus usos atuais pelo povo innu. A figura do nômade reforça a ideia de transmissão de uma herança cultural, de perpetuação de uma história e de uma memória que viajam através do tempo, retomadas por gerações sucessivas. Essa figura tem também um efeito no papel de transmissor de memória assumido pelo romance e pela mobilidade

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de suas formas narrativas, marcadas tanto pela instabilidade enunciativa de um discurso constituinte, quanto pela estratégia narrativa que opta por uma estrutura fragmentada. A figura do nômade também está presente na representação espacial, enfatizando as vias de comunicação que ligam os diferentes lugares, como as estradas, a ferrovia, os rios e os múltiplos deslocamentos realizados pelos personagens: aqueles da voz autoral que mostra a vida dividida da mulher innu entre a reserva, a cidade e a memória dos territórios tradicionais; aqueles dos innu de Uashat rumo à cidade ou aos territórios dos ancestrais.

Essas mobilidades figuram itinerários ambivalentes, dilacerantes, e ao mesmo tempo reconfortantes, remetendo a sujeitos que não encontram seu lugar, a um processo criador que se aproxima daquele que, segundo Dominique Mangueneau, se nutre “dos lugares, dos grupos, dos comportamentos enredados em um impossível pertencimento16”.

Recorremos aqui à noção de “paratopia” de Maingueneau para esclarecer o discurso constituinte da voz autoral em Kuessipan. Essa noção designa um pertencimento paradoxal que “não é a ausência de todo lugar, mas uma negociação entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária que vive da própria impossibilidade de estabilizar- se17”. É a escolha feita pelo romance para interrogar o processo de reconstrução identitária dos ameríndios, em meio a uma sociedade ocidental moderna, ela própria às voltas com seus múltiplos referentes identitários e suas dinâmicas de relações com a alteridade. Ela salienta, assim, a complexidade de um processo em evolução e renuncia à polarização entre modernidade ocidental e tradições ameríndias, lógica que produz representações de espaços resguardados. Ainda assim, a narrativa não deixa de mostrar a precariedade material e psíquica que atinge os innu, nem de evocar as consequências da desapropriação territorial e da desestruturação de seu sistema sociocultural, elementos que emergem aqui e ali ao longo da narrativa, mais especificamente na segunda parte.

A Reserva de Uashat, espaço em devir: entre confinamento e negociação

Em Kuessipan, o espaço da reserva é representado como um espaço em devir.

Percebem-se transformações do sistema sociocultural innu introduzidas pela modernidade ocidental, que podem ou substituir hábitos antigos, como a snowmobile usada para se deslocar na neve, ou conviver com elementos da tradição, como o francês e a língua

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innu. A elaboração de uma etnografia poética do interior das casas revela a hibridação dos costumes, ao enumerar os objetos familiares ou fazer referência a seus hábitos alimentares, como quando eles colocam lado a lado “latas de sopa em conserva, de favas com bacon, de milho, gordura, um pote de carne-seca de rena” (K, p. 92)18. Essa “memória dos objetos” remete ao quadro externo da memória cultural. Como lembra Jan Assmann,

“[o] mundo de objetos no qual ele [o homem] vive comporta um indício temporal que remete tanto ao presente quanto a diversos estratos do passado19”. Costumes ancestrais persistem e convivem com os da modernidade ocidental, remetendo a uma representação espaço-temporal dinâmica que recusa uma visão essencialista.

A narrativa lança-se em uma verdadeira topografia da Reserva de Uashat, indicando suas estruturas e instituições, sem deixar de destacar a precariedade material do lugar: “A escola de ensino fundamental, a de ensino médio. O Conselho Grupal. A igreja católica. Uma centena de casas, três modelos. O parque depredado. O lixo num canto das calçadas, das cercas, das casas” (K, p. 55)20. A representação evidencia o enclausuramento do espaço, as cercas nas casas, nomes de ruas em innu (Pashin, Kamin) ou alusões a ruas fronteiriças que penetram em Uashat, mas que pertencem também à malha urbana da cidade (Arnaud, De Quen21):

Um vilarejo minúsculo chamado de reserva. Ruas. Pashin. De Queen. Grégoire. Arnaud. Kamin. Há areia na frente das casas.

No asfalto das ruas. Nos tapetes de entrada. Atrás das Galeries Montagnaises, só areia. O carro dá a partida. Não importa o que eu diga, é meu lar que estou deixando22 .

Como era de se esperar, a toponímia lembra a história de Sept-Îles, aquela da colonização aludindo à evangelização dos indígenas: Jean De Quen (1603-1659), jesuíta missionário francês, criou a missão de Sept-Îles em 1642; Charles Arnaud (1826-1914), missionário francês, chamado de “Papa dos Montagnais”23, viveu 64 anos na Côte- Nord. Juntas, toponímia e topografia assinalam as transfigurações culturais e sociais que repercutem no espaço, como mostra a referência às Galeries Montagnaises, centro comercial administrado pelo Conselho Grupal de Uashat e Mani-Utenam. A imagem da areia que invade tudo, como se a natureza revoltada quisesse retomar seu lugar e livrar-se dessa ocupação, é um símbolo forte do desajuste provocado por todas essas mutações,

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inclusive na voz autoral que se inventa enquanto escritora e que sente dificuldade em identificar-se com esse espaço, em considerá-lo como seu lar, como um lugar habitável:

A cidade termina onde a reserva começa. A cerca plantada ali, um guardião contra os lobos, os innu. Eles se detêm atrás da barreira.

Mantêm-se bem perto. Procuram a saída, acham o caminho de suas próprias leis. Eles querem fugir para onde não existem barricadas24. A configuração de um espaço fechado instituída por esse fragmento de Kuessipan repercute a ideia de encarceramento e de falta de opções para os innu. Aqui a reserva aparece como um espaço confinado, contíguo à cidade de Sept-Îles. Ela mostra as tensões características da convivência dos innu com a sociedade quebequense moderna e evidencia, ao mesmo tempo, o mal-estar e o desamparo desse povo, causados pelos problemas resultantes de um processo de interação desigual entre as duas sociedades.

A descrição topográfica reveste uma dimensão histórica que lembra as transformações impostas aos innu ao longo do tempo:

A capela batista foi construída na frente do cemitério católico da reserva. [...]. O coração católico, estabelecido desde a época dos jesuítas, ainda bate na alma innu; única religião aprendida, adquirida, quase tradicional tanto que o sacerdócio remonta a tempos antigos nas lembranças da nação. Única lembrança esquecida: a emancipação dos innu na idade das primeiras letras.

O acontecimento: o rapto dos indígenas que nunca pediram para serem brancos. Seus filhos dispersos, levados para fora dali durante os duros meses do ano letivo para dar, dizem, um sentido à sua inteligência25.

A imposição da religião católica e de um sistema educativo que colocava as crianças em internatos católicos constitui uma estratégia de assimilação e de dominação dos ameríndios que serviu para desestruturar sua organização social. Isso explica, em parte, seu desamparo econômico e psicológico atual, particularmente o dos jovens innu.

São mostrados jovens que circulam em bandos à noite, vítimas do alcoolismo, das drogas, da violência. Quanto às jovens innu, sua presença recorrente na narrativa enfatiza a maternidade precoce e os vários filhos criados por mães muito jovens e isoladas. Os mais velhos escapam de vez em quando desse espaço confinado da reserva, dedicando- se a costumes antigos, como a caça e a pesca nos territórios dos ancestrais. Há também

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jovens que redescobrem as tradições ancestrais e que desejam ir para o interior para voltar às origens e reencontrar o equilíbrio. O potencial do futuro dos jovens innu passa pela reconstrução da ponte entre o passado e o presente, o que inclui a negociação entre alteridades que não podem mais ser consideradas como exclusivas.

Para além da Reserva de Uashat, encontra-se a cidade de Sept-Îles, cuja presença mal se pressente. O modelo da organização social e do desenvolvimento ocidental é metonimicamente representado pelas luzes da Aluminerie Alouette, estabelecida na baía desde 1992:

De longe, parece Paris, por causa da fábrica iluminada que aponta como a torre, a deles. Mas quem já viu Paris? A areia é suave, está quente. O fogo ilumina uma parte do rosto das pessoas que olham para ele. Mas quem disse que não podia? Os brancos, que quiseram tomar conta dessa baía para construir caminhos e pontes, e casas a mil dólares o pé quadrado. Ao passo que ela se basta, esta baía, como eles se bastam, uma parte do rosto iluminada pelas chamas da proibição26. O que se lê nas entrelinhas desse belo trecho é a transformação gradual dos grandes espaços naturais ocupados por ameríndios, que sofreram a imposição de normas de utilização do seu território em função de projetos que respondem unicamente a exigências do modelo ocidental de desenvolvimento industrial. Na cena evocada acima, um grupo de jovens innu goza do prazer momentâneo de reunir-se na praia à noite, à volta de uma fogueira. Uma cena inocente, mas proibida pela lei. O uso do território pelos innu é percebido pelos representantes da sociedade canadense como arcaico, como um entrave ao desenvolvimento moderno da nação, razão das normas que limitam seu acesso, das regras para a caça e para a pesca e da ameaça de prisão para todos aqueles que não as respeitam.

A exuberância do meio ambiente natural, o mar – a foz do grande rio Saint-Laurent bem próxima – e os vários rios que levam aos territórios dos ancestrais, contrasta com a inospitalidade do espaço urbano da Reserva de Uashat. Apesar de indícios evidentes de decomposição, o espaço natural circundante é percebido como um espaço de liberdade em contraste com o da reserva: “O cheiro do mar que está próximo. A areia que leva à baía.

A água poluída pela fábrica de alumínio. A ilha Grande-Basque. O oceano” (K, p. 39)27. A possibilidade de fugir do duro quotidiano da reserva consiste em atravessar seus limites para ir rumo à baía que a costeia: “Se tu continuas em linha reta, teus pés caminharão na

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areia. Sentirás o ar salgado. É a hora do pôr do sol. O céu vai aprontar das suas. Deixa as ondas ritmarem teus sentidos. Isso te acalmará” (K, p. 39)28. A abordagem poética da natureza permite à narrativa fazer a passagem entre o sentimento de precariedade dos habitantes com o meio urbanizado da Reserva de Uashat e o da alegria de poder criar um espaço próprio através de uma relação intimista com a natureza: “O rio é suave. Sua água sacia. Ela revigora a longa transposição do outono” (K, p. 41)29. O trajeto que leva os innu a seus territórios tradicionais também é considerado como um caminho para uma dimensão de plenitude, onde “Tudo se opõe ao senso comum. Tudo repousa, as almas antigas e as famílias de férias” (K, p. 94)30. A narrativa indica a transformação do uso dos territórios tradicionais através do tempo.

Ancestralidade: Nutishimit, o interior

Depois de “Nômade”, que esboça o projeto de escrita de uma voz autoral feminina, e de “Uashat”, que mostra o quotidiano da reserva, a terceira parte do romance, “Nutshimit”, privilegia a relação dos innu com seus territórios ancestrais. O texto estabelece vínculos entre identidade e espacialidade que alimentam o sentimento de pertencimento dos innu a seus antigos territórios.

Quando se trata de colocar em cena os grandes espaços dos territórios tradicionais dos innu, a abordagem poética de Naomi Fontaine acaba com um imaginário do Norte, assentado na periculosidade, na inospitalidade e na desolação desse espaço, e propõe um universo regenerador e acolhedor. A autora afasta-se da mise-en-scène da relação do Homem com esse meio, motivada pelo confronto com a natureza, característica de inúmeras narrativas que representam o espaço nórdico. Em Kuessipan, o sentido da viagem dos innu em direção aos territórios dos ancestrais significa o abandono do sedentarismo para buscar suas origens em lugares sagrados, onde eles deixam suas crenças se expressarem, retomam seus ritos, dedicam-se à musica, à dança, à pesca do salmão e à caça. Lá reencontram o espírito solidário da comunidade, a alegria de viver e experimentam novamente a sensação de liberdade. Essa representação repousa no imaginário dos territórios tradicionais ameríndios como um espaço regenerador que perpetua a aventura nômade e a liberdade.

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Nutshimit é o interior, o de meus ancestrais. Cada família conhece seu espaço. Os lagos servem de estrada. Os rios indicam o Norte. Se alguém se aventura para longe demais por falta de juízo, a ferrovia está sempre ali para guiar o caminho.

Nutshimit, um ritual para os caçadores de renas. Um ar puro imprescindível para os idosos. Desde que perderam o vigor das pernas, vão para lá respirar.

Nutshimit, um terreno desconhecido, mas não hostil para aquele que lá busca o repouso do espírito. Outrora, estas florestas eram habitadas por homens e mulheres que tomavam com suas mãos o que a Terra lhes oferecia. Eles não estão mais aqui, mas deixaram nas rochas, na água das quedas e no verde dos abetos sua marca, seu olhar31. O discurso sobre os territórios ancestrais dos innu desenrola-se por meio de um savoir-faire sobre esses territórios que é transmitido de geração em geração. O patrimônio cultural innu, fundamento da identidade desse povo, pode ser transmitido pelo uso desses territórios que lhes permite estabelecer uma negociação entre o não-lugar (as restrições do modelo urbano ocidental) e o lugar (o modo de vida ancestral), de modo a experimentar, nem que seja momentaneamente, o sentimento de ter seu próprio lugar. A narrativa de Naomi Fontaine coloca em cena a necessidade vital que os innu sentem de visitar seu antigo território, renovar as práticas tradicionais coletivas e reencontrar uma relação harmoniosa com a natureza, ainda que se encontrem inseridos em um modo de vida contemporâneo.

Quando eram habitadas pelos ameríndios, as florestas do Norte eram, para os primeiros colonos, imaginadas como florestas virgens. No século XXI, as formas de organização territorial impostas aos ameríndios esvaziaram-nas de suas populações, obrigadas a morarem em reservas ou em meio urbano, desapropriadas de seus territórios e, por conseguinte, da relação íntima que mantinham com eles.

Hoje, a relação com a espacialidade não garante mais a sobrevivência da população innu, mas lhe permite conservar a memória de seu sistema cultural e transmiti-la a outras gerações. Isso explica o papel importante dos anciães como guardiães da memória e transmissores de um modo de vida ancestral, como se observa na construção do retrato do avô, Anikashan, que a narrativa erige como figura admirável de resistência do modo nômade ancestral. Ele, que recusou a mudança imposta pelo governo federal para a Reserva de Mani-Utenam, criada em 1949; ele, que continuou percorrendo o país para manter vivo o caminho da tradição; ele, que

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se apropriou do conhecimento do território para legá-lo a seu povo; Anikashan, o ancião, o avô da narradora:

Tu eras caçador, nômade, sobrevivente. Tu envelheceste, deixaste de abater o abeto, legaste tuas lutas que nunca foram perdidas. [...]

Conheces de cor os nomes dos rios e das árvores. Os dos montes e dos vales, as plantas que curam e as que fazem mal. Podes nomear os ventos e as estações, as neves molhadas e as tempestades de neve. Conheces os animais e seus filhotes.

[...] tu, o grande homem de cabelos grisalhos, tu, que adquiriste o conhecimento de todo um povo, que tiveste filhos orgulhosos e numerosos.

Tu, Anikashan32.

Reatar o fio do espaço-tempo: projetar-se no futuro

Da transmissão da experiência do território tradicional dependia a sobrevivência material e cultural dos innu. O ponto de vista da narrativa propõe o trajeto para Nutshimit, o interior, como uma estratégia à qual recorrem os innu para continuarem a viver num lugar e perpetuar uma relação com o espaço que faça sentido para sua existência, sem romper com os elementos da modernidade urbana quebequense. Esse legado, que atravessou séculos, ainda faz parte de seu presente, e os innu estão em busca de sua continuidade. A escrita do romance é uma maneira de contribuir para assegurar essa continuidade no futuro. Na última parte da narrativa, “Nikuss” (meu filho), é a figura do filho, bisneto de Anikashan e filho da narradora, símbolo da renovação, que permite revisitar o passado, viver o presente e projetar-se no futuro:

Tua infância reconfortará meus sete anos. O novo olhar que lançamos sobre as coisas que ofuscam. Teu riso será o eco de minhas esperanças. O sol se porá diante de nossos olhares distraídos. Sem bruma, sem chuva, sem passado pesado demais que faz sufocar o que vive. O silêncio que cerca nossos sonhos de futuro. Perto da margem e das marés, nós estaremos, Nikuss33.

A imagem da criança, uma constante no romance, faz parte do roteiro da renovação que ela encarna. Esse trecho que marca o término da narrativa acentua a esperança de um futuro menos traumático, que permita interações entre dois modos de ser diferentes.

Caminhando no rastro do avô, o neto dá continuidade à vida nômade das origens enquanto a enraíza em outra temporalidade. Não se trata de uma volta nostálgica e impossível ao

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passado, mas de considerar uma transição reconciliadora entre o passado e o futuro. A obra cumpre sua missão de transmissão de uma herança enquanto aposta que as novas gerações aceitem o desafio anunciado no título: para ti, a tua vez.

***

Na Uashat de Gérard Bouchard, os territórios dos ancestrais no Norte correspondem a um país de fantasia. Na Kuessipan de Naomi Fontaine, preservar o contato com os territórios é uma necessidade real e uma forma de resistência, uma via regeneradora que permite aos innu escaparem de sua decadência psicológica e cultural. A figuração espacial reforça o mito da filiação da comunidade a um território onde ela pode reencontrar o modo de vida tradicional innu. Mas também indica que a experiência desse espaço está longe de ser exclusiva, pelo contrário, ela é simultânea àquela do espaço domesticado da reserva e à apropriação dos códigos que regem o meio urbano. É assim que a reconfiguração espacial proposta por Kuessipan liberta-se da visão dicotômica (modernidade ocidental versus tradições ameríndias) para dotar-se de uma perspectiva dialética que dá conta da complexidade das dinâmicas espaciais contemporâneas que dizem respeito aos innu do Quebec. É isso também que a autora quer que compreendamos quando ela testemunha:

É certo que há muito sofrimento por trás da miséria, mas eu queria também que as pessoas soubessem quem nós somos, que também temos forças, entre outras, as crianças e a família, e que as pessoas querem se dar bem. O passado é o passado, precisamos lidar com o que temos. Eu não gostaria de escrever apenas sobre pessoas que estão por baixo. Descrevo a miséria, mas, para além das aparências, é importante mostrar a força e a beleza34.

Naomi Fontaine ganhou sua aposta graças à invenção de uma voz autoral em filigrana. Sútil e delicada, essa voz inaugura um espaço de escrita que deixa transparecer os rastros dos referentes identitários que a fundamentam: relação com a família e com a herança do status de ameríndio; o pertencimento a territórios múltiplos – da reserva, da memória dos territórios ancestrais, da cidade ocidental; legado de uma história familiar e coletiva marcada pela perda. A escrita é, para a autora, uma experiência reparadora que lhe permite projetar um lugar habitável para os ameríndios na contemporaneidade quebequense e ocidental: um ato de resistência, de reconstrução e de transmissão voltado para o futuro35.

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Notas

¹ ERIMIT - Equipe de Recherches Interlangues « Mémoires, Identités, Territoires » Université Rennes 2 / Institut Universitaire de France. Rennes, Bretagne, France. rgodet@9online.fr.

² Naomi FONTAINE, « Je viens de là-bas », p 44-47, in Serge BOUCHARD, Jean DESY (Org), Objectif Nord: Le Québec au-delà du 49e, Montréal, Éditions Sylvain Harvey, 2013, p. 44. NT: Venho desse lugar e, quanto mais me distancio dele, mais ele me habita. Talvez o exterior me tenha moldado, mas é esse lugar que me lembra quem sou.

³ Marc AUGE, Non-lieux: introduction à une anthropologie de la surmodernité, Paris: Seuil, 1992.

4 Simon HAREL, Espaces en perdition: tome I. Les lieux précaires de la vie quotidienne, Québec,: PUL, 2007.

5 Monique DURAND, “Venir À L’Écriture”, Littoral, n. 10, printemps 2015, “L’Écriture innue”, Pierre ROUXEL (dir.), p. 141-145, p. 141.

6 Ibid.

7 Naomi FONTAINE, Kuessipan, Montréal: Mémoire d’encrier, 2011. A partir de agora, esta obra será referida pela sigla K, entre parênteses, seguida do número de página do excerto.

8 Gérard BOUCHARD, Uashat, Montréal: Boréal, 2009.

9 Naomi FONTAINE, disponível em http://innutime.blogspot.fr/ 2014.

10 Dados disponíveis no site oficial do Conselho Grupal de Innu Takuaikan Uashat Mak Mani-Utenam http://

www.itum.qc.ca/page.php?rubrique=c_historiquecommunautaire.

11 Encontro no Café Toscane, em Sept-Îles, no dia 16 de maio de 2016, na presença de Brigitte Thiérion (Paris 3) e de Pierre Rouxel (editor da revista Littoral).

12 FONTAINE, Kuessipan, op.cit., p. 9: « J’ai inventé des vies. L’homme au tambour ne m’a jamais parlé de lui. J’ai tissé d’après ses mains usées, d’après son dos courbé. Il marmonnait une langue vieille, éloignée.

J’ai prétendu tout connaître de lui. L’homme que j’ai inventé je l’aimais. Et ces autres vies, je les ai embel- lies. Je voulais voir la beauté, je voulais la faire. Dénaturer les choses – je ne veux pas nommer ces choses – pour n’en voir que le tison qui brûle encore dans les cœurs des premiers habitants. »

13 Id., p. 20 : « Lettres à mon bébé. À ma mère. À ma grande sœur. À Dieu. À mon père. À Lucille. À Jean- Yves. À l’agente de l’éducation du Conseil de bande de Uashat et de Mani-utenam. Aux parents de mon ex. À mon ex. À moi-même. À ma petite sœur. Au premier ministre du Québec. À mon frère. À Gabriel. À mon grand cousin Luc. À Nicolas D. À William, mais pas le prince. À ce monde cruel. À mon peuple. Au père de M. Aux gens tristes. Aux enfants du futur. »

14 Monique DURAND, “Venir à l’écriture”, op.cit., p. 144.

15 Id., p. 22 : « Nomade: j’aime concevoir cette manière de vivre comme naturelle. »

16 Dominique MAINGUENEAU, http://dominique.maingueneau.pagesperso-orange.fr/glossaire.html.

17 Ibid.

18 K. p. 92: « des boîtes de conserves de soupe, de fèves au lard, de maïs en grain, de la graisse, un contenant de viande de caribou séchée. »

19 Jan ASSMANN, La mémoire culturelle, Paris: Aubier, 2010, p. 18.

20 K., p. 55: « L’école primaire, le secondaire. Le Conseil de bande. L’Église catholique. La centaine de mai- sons, trois modèles. Le parc vandalisé. Les déchets sur le coin des trottoirs, des clôtures, des maisons.»

21 De Quen é o nome de uma avenida em Sept-Îles em homenagem ao missionário Jean De Quen. Em Kues-

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sipan, a grafia “De Queen” resulta talvez de um lapso, em uma narrativa que respeita o pacto da represen- tação realista da topografia.

22 FONTAINE, Kuessipan, op.cit., p. 34: « Un minuscule village appelé réserve. Des rues. Pashin. De Queen.

Grégoire. Arnaud. Kamin. Il y a du sable sur le devant des maisons. Sur l’asphalte des rues. Sur les tapis d’entrée. Derrière les Galeries Montagnaises, que du sable. L’auto démarre. J’ai beau dire, c’est mon chez- moi que je quitte. »

23 N. de trad.: Montagnais [montanhês] foi o nome dado aos povos innu pelos primeiros exploradores franceses do Canadá; foi substituído oficialmente em 1990.

24 Id., p. 48: « La ville s’arrête où la réserve commence. La clôture plantée là, un gardien contre les loups, les Innus. Ils s’attardent derrière la barrière. Se tiennent tout près. Cherchent l’issue, trouvent le chemin de leurs propres lois. Ils veulent fuir, là où il n’y a pas de barricades. »

25 Id., p. 49: « La chapelle baptiste a été construite devant le cimetière catholique de la réserve. […]. Le cœur catholique, établi depuis l’époque des jésuites, bat encore dans l’âme innue ; seule religion apprise, acquise, presque traditionnelle tant la prêtrise remonte à loin dans les souvenirs de la nation. Seul souvenir oublié:

l’émancipation des Innus à l’âge des premières lettres. L’événement : l’enlèvement des Indiens qui n’ont jamais demandé à être Blancs. Leurs enfants dispersés, emmenés ailleurs durant les durs mois de l’année scolaire afin de donner, disent-ils, un sens à leur intelligence. »

26 Id., p. 33: « De loin, ça ressemble à Paris, à cause de l’usine illuminée qui pointe comme la tour, la leur. Mais qui a déjà vu Paris ? Le sable est doux, il fait chaud. Le feu éclaire une partie du visage des gens qui le regar- dent. Mais qui a dit qu’il ne fallait pas ? Les Blancs qui ont voulu s’approprier cette baie pour y construire des chemins et des ponts, des maisons à mille dollars le pied carré. Alors qu’elle se suffit à elle-même, cette baie, comme eux se suffisent à eux-mêmes, une partie du visage éclairée par les flammes de l’interdit. »

27 K, p. 39: « L’odeur de la mer à proximité. Le sable qui mène à la baie. L’eau polluée par l’aluminerie. L’île Grande- Basque. L’océan. »

28 Ibid.: « Si tu continues ton chemin droit devant, il y aura du sable à tes pieds. Tu goûteras le salé de l’air. C’est l’heure où le soleil se couche. Le ciel fera des siennes. Laisse les vagues rythmer tes sens. Ça t’apaisera. » (K, p. 39).

29 K. p. 41: « La rivière est douce. Son eau abreuve. Elle ravive le long portage de l’automne. »

30 K. p. 94 : « Tout s’oppose au sens commun. Tout repose, les âmes anciennes et les familles en vacances. »

31 Id., p. 65: “Nutshimit, c’est l’intérieur des terres, celles de mes ancêtres. Chaque famille connaît ses terres. Les lacs servent de route. Les rivières indiquent le nord. Si on s’aventure trop loin, par manque de jugement, il y a toujours le chemin de fer pour retrouver sa voie.

Nutshimit, un rituel pour les chasseurs de caribous. Un air pur dont les vieux ne peuvent se passer. Depuis qu’ils ont perdu la vigueur de leurs jambes, ils y vont pour respirer.

Nutshimit, un terrain inconnu, mais non hostile pour celui qui y cherche le repos de l’esprit. Autrefois, ces forêts étaient habitées par des hommes, des femmes qui prenaient de leurs mains ce que la Terre leur offrait. Ils n’y sont plus, mais ils ont laissé sur les rochers, l’eau des chutes et le vert des épinettes leur empreinte, leur regard. »

32 Id., p. 79-81: “Tu étais chasseur, nomade, survivant. Tu as vieilli, tu as cessé d’abattre l’épinette, tu as légué tes luttes qui jamais n’ont été perdues. […].

C’est par cœur que tu connais les noms de rivières et des arbres. Ceux des monts et des vallées, les plantes qui guérissent et celles qui font mal. Tu peux nommer les vents et les saisons, les neiges mouillées et les poudreries. Tu connais les bêtes et leurs petits.

[…] toi le grand homme aux cheveux gris, toi qui as acquis la connaissance de tout un peuple, toi qui as engendré des enfants fiers et nombreux.

Toi, Anikashan. »

33 Id., p. 111: “Ton enfance réconfortera mes sept ans. Le regard neuf que l’on porte sur les choses qui ébloui- ssent. Ton rire sera l’écho de mes espoirs. Le soleil se couchera sous nos regards distraits. Pas de brume, pas de pluie, pas de passé trop lourd qui fait suffoquer ce qui vit. Le silence entourant nos rêves d’avenir.

Près de la rive et des marées, il y aura nous, Nikuss. »

34 Ver a entrevista de Naomi Fontaine disponível em

http://www.lapresse.ca/arts/livres/entrevues/201105/13/01-4399063-naomi-fontaine-bons-baisers-de-la- reserve.php: “C’est sûr quʼil y a beaucoup de souffrance derrière la misère, mais je voulais aussi que les gens sachent qui on est, quʼon a aussi des forces, entre autres les enfants et la famille, et que les gens veulent sʼen sortir. Le passé, cʼest le passé, il faut faire avec ce quʼon a. Je nʼaurais pas eu envie dʼécrire juste sur des gens qui sont à terre. Je décris la misère, mais en dessous, il est important de montrer la force et la beauté”.

35 O texto da autora foi traduzido do francês por Patricia Reuillard.

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