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O que de mais natural que o plurilinguismo ?

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O que de mais natural que o plurilinguismo ?

BRONCKART, Jean-Paul, BULEA BRONCKART, Ecaterina

BRONCKART, Jean-Paul, BULEA BRONCKART, Ecaterina. O que de mais natural que o plurilinguismo ? In: J.-P. Bronckart & E. Bulea Bronckart. As unidades semióticas em ação.

Estudos linguísticos e didáticos na perspectiva do interacionismo sociodiscursivo . Campinas : Mercado de Letras, 2017. p. 67-89

Available at:

http://archive-ouverte.unige.ch/unige:109185

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1 / 1

(2)

Jeun-Poul Bronckorf Ecoterino Bules Bronckort

I

lJt\lIDADES SIII,IIOTICAS

-

AIAO I

rsTUD0s ilNGUi$tC0S

E

ilDÂil(OS NA PTRSPEfiIVA

DO

I NTERAC|0N

tSM0 S000DtSru Rsruo

orgunizoçoo

Eliune Gouvêo

Lousodo

Luzio

Bueno

Ano Morio de Mollos Guimorôes

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I

(3)

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s

4

O OUE DT MAIS NATURAL OUE O PLURII-INGUISMO?'

Jean-Paul Bronckart Ecaterina Bulea Bronckart

0 plurilinguismo, lerreno do vido das linguas

Nesses escritos consagrados ao bilinguismo (confira sobretudo 1996), nosso saudoso colega

de trabalho

e

amigo Miguel Siguan tinha

demostrado

que,

apesar

das fases

recorrentes

que visavam à

instauraçâo de uma rinica lingua dominante (da rcorvq de Alexandre ao

Iatim medieval

e

ao anglo-americano contemporâneo), o

plurilinguismo sempre

constituirâ a

realidade primeira da vida linguageira e continuarâ a caracterizar a situaçâo

Ediçâo original : Bronckart, Jean-Paul e Bulea Bronckart, Ecaterina (201,4). " èHay algo mâs natural que el multilingùismo?", ir.' I. Gar- cia-Azkoaga e I. Idiazabal (eds.) Para una ingenefia didâctica de Ia educaci6n plwiJingûe. Bilbao: Servicio Editorial de la Universidad del Pais Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea, pp. 21-38. Ttaduzido com a amâvel autorizaçâo de lfles Garcia-Azkoaga e de Itziar ldia- zabal. Ttaduçâo de Ana Paula Silva Dias. Revisâo de Eliane Gouvêa Lousada e Luzia Bueno.

Série ldeias Sobre Linguagem 67

(4)

linguistica da imensa maioria das comunidades humanas.

Um fato simples que mostra isso hoje é

a

situaçâo desta entidade polftica renovada que

é a

Europa,

no

seio da qual, quaisquer

que

sejam

as

modalidades técnicas de diferenciaçâo

e de

classificaçâo, admite_se cinquenta linguas que coexistem e estâo em interaçâo mais ou menos diretas. Mais importante para nossas afirmaçôes é a anârise que propôe Siguan do processo hist6rico conduzido para a configuraçâo atual das linguas romanas. Depois da queda

do

Império romano, quando

o latim era a

ûnica lingua escrita reconhecida pelo poder eclesiâstico

e

quando as comunidades, essencialmente rurais, eram dispersadas em mûltiplas ilhas territoriais,

sâo

(re-)constitufdas mrÎtipras variantes

da lingua

falada, marcadas

pelos

substratos locais de antes da conquista romana e se distribuindo em uma espécie de continuurn permitindo, entre comunidades geograficamente vizinhas, uma forma de intercompreensâo que ia diminuindo com a distância espacial:

[Na época do Juamento de Strasbourgl,

o

latim da Flança

-

e podemos observar o mesmo fenômeno no resto do domfnio das linguas romanas

_

passou por uma evoluçâo que produziu dialetos defirenciados de acordo com as regiôes, mas essas diferentes formas linguisticas constituiam, sem drivida, um continuum sem limites precisos entre seus componentes. (Siguan 7gg6,p.22)

Com o

progressivo desenvolvimento

das

trocas econômicas

e a

constituiçâo

de mais

amplas entidades polfticas,

um

primeiro esboço

de

estruturaçâo sucedeu

o

continuum

plurilingue

inicial, reunindo

em

zonas de intercompreensâo

presumida (ou seja nâo

anulando completamente a variaçâo interna) conjuntos de variantes posteriormente

qualificados de

dialetos;

a tftulo

de exemplo, para o que constitui o espaço franc6fono europeu contemporâneo

: o

angevino,

o

auvernês,

o

berrichon,

o

borgonhês,

o

catalâo,

o

champanhês,

o

franciano, o franco-condês,

o

franco-provençal,

o galo, o

gascon, o

68 tditora Mercado de Letras

(5)

).

a a ô a s À

e :l :I

S

I

languedociano, o limusino, o loreno, o marchois, o normando, opicardo, o poitevino, o provençal e o valâo.2

Nesta fase do

desenvolvimento

linguistico,

que catachetizolJ a quase totalidade das regiôes da Europa do século VIII ao XVI, o plurilinguismo apresentava uma dupla dimensâo. Sob o ângulo interno, cada idioma era constituido afiavés

da

combinaçâo

de um

estado

do latim

falado localmente e de um ou vârios substratos (celtas, germânicos ou outros), e todo idioma era entâo originalmente misto ou ,,bastardo " nos planos lexi cal e morfossintâtico; sob o ângulo externo, cada um dos falantes estava geograficamente em interaçâo com um ou vârios outros, e esses contatos geraram necessariamente empréstimos, influências

e

adaptaçôes reciProcas.

Esse duplo

pluriknguismo sobreviveu

no

tecido social profundo

até que os

procedimentos

de

educaçâo generalizada da segunda metade do século XIX produzissem seus efeitos, mas desde

o

século XVI, sobre esse terreno

constitutivo vieram se juntar

empreendimentos de unificaçâo e de padronizaçâo articuladas a três ordens de motivaçôes. Uma era a ordem econômica, a diversidade dos dialetos constituia uma dificuldade para o desenvolvimento das trocas comerciais, e convém lembrar a respeito disso

que a

primeira gramâtica

do

francês

foi redigida

(em inglês) por Palsgrave

em

1530, para os comerciantes de Além-Mancha

que se

deslocavam regularmente pela Ftança. Outra motivaçâo era de ordem cultural

e

atendia a necessidade de dispor de lfnguas de grande circulaçâo para a difusâo de obras poéticas ou teatrais. Como se sabe, a motivaçâo mais importante (e decisiva) erar no entanto, de ordem politica, a constituiçâo progressiva das grandes naçôes europeias (Inglaterra, Espanha, FYança, Portugal

2. Nota de traduçâo: no original: l'angevin, I'auvergnat, le berrichon, le bourguignon, le catalan, le champenois, le francien, le franc- comtois, le franco-provençal, le gallo, le gascon, Ie languedocien, Ie limousin, le lorrain, le marchois, le normand, le picard, le poitevin, le provençal et le wallon.

Série Ideias Sobre Linguagem 69

(6)

e,

posteriormente, Alemanha

e ltâlia) tendo

gerado q vontade de instauraçâo de uma lfngua comum nacional;

vontade que, pelo viés da constituiçâo de textos politicos

e

juridicos monolingues, depois

pela

elaboraçâo

e

pela difusâo de uma lfngua de comunicaçâo militar, depois enfim pela implementaçâo

de

sistemas

de

ensino obrigatôrios evocados mais acima,

ia

conduzir, entre os séculos XIX e )O(, a uma situaçâo prôdma daquela que n6s conhecemos atualmente: as lfnguas do Estado coexistindo com algumas linguas regionais que puderam resistir, por diversas razôes, aos procedimentos que visavam à sua marginalizaçâo, por vezes à sua "extirpaÇâo".:

Primeiros ohordogens teôrkos da diversidode dos linguos

A diversidade das propriedades das linguas intrigou filôsofos e gramâticos, ao menos desde os trabalhos dos anomalistas da Antiguidade romana,

e

esse interesse se reanimou com a promoçâo das lfnguas outrora qualificadas como "vulgares", para alcançar, no fim do século XVIII, os procedimentos de anâlise e de comparaçâo da qual mais emblemâtica é, sem drivida, aquela realizada porWilhelm von Humboldt. Esse riltimo procedeu aos estudos de mriltiplas lfnguas, do finlandês ao kavi, ao tagalog

e

... ao euskera,

o

que lhe permitiu destacar em particular

a

diversidade

"Entre um povo livre, a lingua deve ser uma e a mesma para to_

dos". Essa f6rmula de Barère (fechando sua intervençâo no Comitê de Salvaçâo Pirblica de B pluviôse do ano II _ I7g4) estâ na origem da retomada, pela Revoluçâo francesa, da empreitada de genera- lizaçâo do uso do francês, e ela se traduzirâ, bem antes que os professores da 3a Repriblica realizem concretamente esse objetivo, por uma abordagem qualificada de ,,terror lingnristico,,. O decreto adotado que seguiu a essa intervençâo estipulava que os ,,lrstjt.u_

dores da lingua francesa,' tinham como missâo extirpar as lfnguas minoritârias e outras linguas diferentes do francês (confira Balibar e Laporte 7974, pp. 81-1 1B).

3.

70 Editora l,lercado de Letnas

(7)

I )

) t

I

e a

complexidade

das

formas

de

organizaçâo sintâtica

e

enunciativa,

de as

descrever

e de as

conceitualizar, antecipando

assim certas

teorizaçôes contemporâneas da determinaçâo e dos processos de enunciaçâo. Sobre o fundo desses estudos empiricos, Humboldt desenvolveu igualmente uma concepçâo das relaçôes entre plano da fingua e plano dos estados ou propriedades do mundo que, como atesta o trecho que segue, rompia definitivamente com

a

doxa

tradicional que

reavivara

os

"Messieurs"

(senhores) de Port-Royal:

Devido a dependência reciproca do pensamento e da palawa, é claro que as linguas nâo sâo propriamente para falar dos meios para apresentar uma verdade conheclda,

mas ao contrârio para descobrir uma verdade antes desconhecida. Sua diversidade nâo se deveu aos sons e aos signos : ela é uma diversidade de visôes do mundo elas pr6prias. (Humboldt 182012000, p. t01l)

Segundo essa concepçâo, as unidades e as estruturas das lfnguas nâo constituem reflexos diretos dos seres, dos objetos e/ou das relaçôes pré-existentes no mundo, mas se dirigem de maneira obliqua a essas entidades mundanas, projetando sobre elas

um filtro

semiôtico

que lhes

dâ forma e as "constitui" no sentido literal do termo. Se ela era particularmente inovadora (e s6 devia ser retomada e

reformulada mais tarde por Saussure e depois por Coseriu), essa concepçâo,

tal

qual a formulava Humboldt, colocava, no entanto, três tipos de problemas.

O

primeiro

dizia

respeito ao estatuto,

à

causa e/

ou

à

origem das diferenças observâveis entre

os

filtros semi6ticos de acesso ao mundo, e nesse dominio o autor tinha adotado a posiçâo, muito em voga na época, segundo

a qual as propriedades especfficas das linguas traduzem as caracteristicas psicol6gicas (afetivas e/ou intelectuais) das

"pessoas" falantes das ditas linguas:

Toda tentativa que visa a identificar as caracteristicas nacionais que deixaram de iado o papel instrumental Série Ideias Sobre Linguagem 7I

(8)

da lingua seda initil, pois é através da lingua que se manifesta e se sela o conjunto do carâter nacional, e é ainda através dela, como meio de compreensâo geral do povo, que se enraizam diferentes individualidades. (Humboldt 1806t1985, p. 371)

O

segundo problema

dizia

respeito ao estatuto e

à

extensâo

do

referente visado pelo

termo

,,povo,',

e

a citaçâo acima confirma bem que

o

tema

da

"psicologia dos povos" revelava uma ideologia claramente associada aos procedimentos politicos de constituiçâo das grandes naçôes: eram essas entidades nacionais emergentes, e somente elas, que se encontravam dotadas de um carâter

particular se

exprimindo

na lingua

comum,

ela

mesma emergente; os subgrupos dessa entidade, que praticavam idiomas às vezes bem distantes

da

lingua nacional em gestaçâo, nâo eram, de fato, considerados como "povos',, e nâo se encontravam entâo dotados de uma psicologia ou de um carâter especifico suscetivel de se exprimir no seu dialeto.

O terceiro problema diz respeito aos julgamentos de valor que eram feitos sobre os traços de carâter ou sobre as capacidades cognitivas associadas às especificidades da lingua de uso. Para certos autores, esses julgamentos permaneciam relativamente equilibrados

e

prudentes,

como foi o caso em particular das apreciaçôes formuladas por Humboldt no que diz respeito à lfngua basca e ao carâter de seus locutores, tal como os relatou Mitxelena:

[Humboldtl elogia sua fe]iz concisâo que nâo prejudica de modo algum a clateza, sobre, por exemplo, o provérbio 273 de Oihenart l...lldiak erasi beharrean, gwdiak, 'Ao invés de ser o boi a se queixar, é a carroça que faz barulho". Mas ele se queixa também, mais de runa vez, do emaranhado inextricâvel dos signos que exprimem as relaçôes com aqueles que e:çrimem os objetos eles mesmos: hâ, em sua opiniâo, certo peso e inabilidade na expressâo obrigatôria da relaçâo ou essa é apenas casual e individual. (Mitxelena 1992, p. 386)

72 Editora l"lercado de Letrds

(9)

Mas

sabemos igualmente

que

esses julgamentos de valor sobre os traços psicol6gicos que supostamente fiaduziam as estruturas prôprias de uma lingua resultaram, para certos politicos, mas também para muitos teôricos, em formas

de

chauvinismo linguistico que deixaram até hoje traços vivos no inconsciente coletivo. Para que fique registrado, lembremos

que

Carlos

\d rei da

Espanha, afirmava

no

século

XVI que "se ele

quisesse

falar

aos homens, ele falaria francês, se ele quisesse falar com seu cavalo, ele falaria alemâo, e se ele quisesse falar com Deus, ele falaria espanhol", enquanto Rivarol, em seu Discours

sur l'universalité de La langue française publicado em !784, sustentava que essa lingua era incontestavelmente a melhor porque traduzia diretamente, em seu modo de estruturaçâo frâsica,

a

maneira

de

perfeiçâo racional

que o

espfrito francês tinha alcançado: "O FYancês, por privilégio rinico, permaneceu sozinho fiel à ordem direta [...] O que nâo é claro nâo é francês; o que nâo é claro é inglês, italiano, grego ou latim" (p. 47).E lembremos, enfim, que Schleicher, em sua obr a Die D eut sc he S pr ac he ( 1 8 60 ), afirmava particularmente que a lingua alemâ estava "em plena saride" porque suas estruturas exprimiam

a

complexidade

e a

riqueza dos

"sentimentos do povo", enquanto que a lingua francesa era um idioma "degenerado" que perdera toda capacidade de expressar o que fora vivido por esse mesmo povo.

E se exktir definilivomenle apenas umllingua humona ?

Sobre esse assunto como sobre muitos outros, as

proposiçôes

de

Saussure,

se

situando globalmente na perspectiva aberta por Humboldt, fornecem um conjunto d.e

clarificaçôes técnicas sobre a base das quais os problemas acima evocados podem encontrar meios de soluçâo.

Lembremos

primeiro que a linguistica geral

de Saussure constitui

o

resultado de

um

longo trabalho de

Série Idelas Sobre Linguagem 1a

(10)

sinrese

e de

generalizaçâo

de

estudos realizados sobre mirltiplos idiomas. O linguista sufço dominava vârias tfnguas modernas e tinha um conhecimento aprofundado ao

fo:ti{

do grego antigo, do sânscrito e das lfnguas antigas

d. i;;;;

do celta, do germânico, do persa antigro, do irtanaês antigo, do armênio, do lituano e de diversas linguas eslavas. Ele nâo parou de analisar esses idiomas, em cada um dos seus niveis de estruturaçâo (fonolôgico, morfol6gico, sintâticof

e

podemos considerar que sua abordagem correspondia implicitamente

ao

principio metodol6gico

de

saturaçâo:

estudar uma diversidade de linguas qrr"

forr"*

suficientes para o surgimento essencial de suas propriedades comuns, ou ainda que nâo houvesse chance qt.r" a

"*t"rrsâo do corpus leve a destacar os fatos verdadeiramente novos. Essa é a metodologia empfrica da qual Saussure nunca se desviou:

[...] com efeito, o estudo da lingmagem como fato humano estâ todo ou quase todo contido no estudo das /rngruas. [. ..1

mas, eu me permito dizer, os mais elementares fenômenos da linguagem jamais serâo vislumbrados, nem claramente percebidos, classificados e compreendidos, se nâo se recoûer, em primeira e em ûltima instância, ao estudo das.ùngruas. Lingua e linguagem sâo apenas uma mesma coisa : uma é a generalizaçâo da outra. Ouerer estudar a linguagem sem se dar ao trabalho de estudar suas diversas manifestaçôes gue, evidentemente, sâo as .l/ngruas, é uma empreitada absolutamente iilitil e quimérica [...1

(Sausswe 2004, p. 1,28)

E

essa abordagem

de

anâlise das lfnguas,

na

sua diversidade, em todas as suas dimensôes e em todas as suas formas

de

realizaçâo, resultava

em uma

definiçâo metodolôgica Oa t INGUA como produto abstrato desses estudos empfricos:

[...] A coisa dada nâo somente a lingua mas as linguas.

E o linguista estâ na impossibilidade de estudar ourra coisa no inicio senâo a diversidade das linguas.. [...] pela observaçâo dessas linguas, ele [o lingndstal poderâ drar

74 Editora Mercado de Letras

(11)

traços gerais, reterâ tudo o que lhe parecer essencial e

universal, para deixar de Iado o particular e o acidental.

Terâ diante de si um conjunto de abstraçôes que serâ a lingua [...] Na lingua, resumimos o que podemos observar nas diferentes linguas. (Constantin 2005, p. 89)

Nas

três

Conferência# que deu em seu retorno à Genebra

em

1891, Saussure, expondo

um

conjunto de conclusôes tiradas

de

seu exame

de

diversos idiomas, destacou fortemente

o carâter

dinâmico

dos fatos

de lnguagem, ou o rnovl'mento incessante que os anima, em tazâo de sua natureza sôcio-hist6rica:

Vale a pena nos deter por um instante diante do principio, elementar e essencial, da continuidade ou da nâo inteîupçâo forçada, que é a pnmeira caracteristica ou a primeira lei da transmissâo do falar humano, sejam quais forem, a volta da lfngua, as revoluçôes e os abalos de qualquer tipo que podem mudar todas as condiçôes.

(Saussure 2004, p. 133)

Essa constataçâo

da

continuidade

na

transmissâo do falar humano conduzirâ Saussure

a

recusar as ideias recebidas relativas ao estatuto e à identidade das linguas, e recusar igualmente um conjunto de noçôes que floresceram na linguistica hist6rica

e

comparada.

A

contestaçâo das ideias recebidas diz respeito à denominagâo das linguas:

se a lingua muda continuamente, nâo pode haver ai ruptura nitida entre uma lingua "atual" e uma lingua "antiga", e

segundo essa mesma argumentaçâo é impr6prio falar de

"lfngua mâe", de "lfnguas filhas", de "criaçâo das linguas", ou ainda de "nascimento" e de "morte" de uma lingua.

Depois de ter realizado sua formaçâo em linguistica em Leipzig, Saussure cumpriu um primeiro percurso universitârio em Paris de 1880 a 1890, e s6 retornou a Genebra em 1891, para ocupar uma câtedra extraordinâria de linguas indo-europeias. E as três con- ferências foram proferidas na inauguraçâo dessa câtedra (confira Joseph 2012).

4.

Sénie Ideias Sobre Linguagem 75

(12)

Nas mesmas conferências, Saussure destacou que as lfnguas continuam se transformando permanentemente, ou ainda

continuam porque se transformam:

Hâ transtormaqâo, e sempre e ainda transformaçâo, mas nâo hâ em lugar algum reproduçôes ou produçôes de um ser linguistico novo, tendo uma existência distinta daquilo que o precedeu e daquilo que o seguirâ. [...] postulamos portanto o principio da transformaçâo incessante das lfnguas como absoluto. Nâo se.apresenta o caso de um idioma que se encontraria em estado de imobilidade e de repouso. (Saussure 2002, pp. 140-141,)

E

esse exame resulta em outra acepçâo da noçâo de lingua, tendo dessa vez um carâter ontol1gico: os fatos linguisticos sâo fundamentalmente continuos, as linguas nâo podem ser verdadeiramente diferenciadas umas das outras,

e

sô haverâ entâo, na verdade, uma ûnica tingua humana:

Se fosse preciso recapitular os principais pontos de vista a que fomos conduzidos nesse primeiro estudo, eu insistiria certamente,ainda uma vez, na impossibilidade radical, nâo apenas de qualquer ruptura, mas de qualquer sobressalto, na tradicâo contfnua da lingua, desde o primeiro dia em que uma sociedade humana falou [...] (Saussure 2004, p.

142)

Saussure, além disso, completou essa anâlise histôrica através de uma abordagem geogrâfica. Seu raciocinio sobre esse tema começa novamente

por

uma constataçâo de evidência: se comparamos, no intervalo de vârios séculos,

a

lfngua falada em

um

determinado

lugar

(um povoado remoto dos Alpes,

por

exemplo), constataremos que ela inevitavelmente mudou; mas se comparamos, nesse mesmo intervalo de tempo, a evoluçâo de uma lingua que era falada em um territ6rio maior, constataremos que as mudangas nâo foram as rnesmas em diferentes pontos desse territ6rio.

t6 Editora l,lercado de Letras

(13)

IS .a

o s s s

d

AIém

de

serem fundamentalmente ligadas ao tempo, as transformaçôes das linguas sâo igualmente sensiveis ao espaço, o que explica, segundo Saussure, que nenhuma das entidades consideradas constituirâ uma "mesma" lingua que seja homogênea no

territ6rio

atribufdo

a

ela. Todas essas entidades sâo caracterizadas por uma djyersjdade interna, e cada idioma que se pode analisar constitui apenas ûma vailante local ou geogrâfica da lfngua à qual se supôe que elas pertençam, sendo pertinente destacar:

Assim n6s nâo srrpreendemos, por assim dizer, em parte alguma, uma iingua que se revele geograficamente una

e idêntica ; todo idioma que se pode citar nâo passa geralmente, de uma das mûltjples formas geogrâficas sob as quais se apresenta o mesmo falar numa regiâo um pouco extensa. Em toda parte,n6s constatamos o fracionamento dialetal. (rbid., p. 145)

Esse fracionamento natural pode

certamente passar desapercebido, porque

os

dialetos

nâo

deixam traços escritos,

e

sobretudo em razâo dos procedimentos sociopoliticos de ocultaçâo, de depreciaçâo ou de extirpaçâo dos diferentes dialetos da lingua do Estado. Mas Saussure insistirâ firmemente

na

unjyersalidade

do

fenômeno de fracionamento, na igua.ldade de direito de todos os idiomas, e no fato de que as lfnguas oficiais sâo apenas dialetos como as outras, tendo sido objeto de uma promoçâo social por razôes nâo contempladas pela linguistica.

Essa problemâtica geogrâfica serâ retomada no Curso IIf,s em um capitulo centrado na anâlise dos fatores que, no espaço, governam as mudanças. Os caracteres dialetais sâo ai definidos como ondas de inovaçâo que se propagam se sobrepondo e se interligando de vârias maneiras, cada regiâo é, nessa perspectiva, apenas um lugar de transiçâo dessas ondas, e os dialetos (como as linguas) constituem

Saussure deu três cursos na Universidade de Genebra com o titulo

"linguistica geral", que designamos geralmente pelas abreviaçôes Curso I (1907), Curso II (7908/ 1909) e Curso III (1910/1911).

t

Série Ideias Sobre Linguagern 77

(14)

apenas

o

estado da configuraçào d.as ondas nesse lugar, estado aberto de todos os lados e sem fronteiras nftiJas.

Saussure

sustenta que essa

propagaçâo

das

ondas lingufsticas é orientada por duas forças socjais gerais:

Em toda massa humana, haverâ a açâo simr:ltânea de dois fatores incessantês, indo até o fim opostos um do oufio: 10 a ôrça do campanario; 2o aforça do intercuso, das comunicaçôes, do comércio entre os homens. (Constantin 200b, p. 128)

A

"força

do

companârio" designa os hâbitos que,

em

uma comunidade restrita, estâo ancorados desde a

infância

e

tendem

a

se manter

ao

longo

do

tempo; no plano lingufstico, eles concorrem

pela

preservaçâo das especificidades do idioma local.

A

,,força do intercurso,,6 estâ ligada às obrigaçôes ou ocasiôes que os humanos têm, mesmo oriundos de pequenas comunidades, de interagir sobre planos diversos (econômicos, politicos, culturais) em um espaço mais amplo. para Saussure, essas duas forças têm efeitos paradoxais. Se nos colocamos em um mesmo lugar restrito, esses efeitos sâo em principio opostos: a influência d'intercurso (soma

de

caracteres comuns com outras localidades) exerceria uma influência unificadora, enquanto que o campanârio (soma dos caracteres pr6prios) exerceria

uma influência divisora, ou de

resistência.

Saussure acrescenta, no entanto, que, se ela parece divisora considerando os fenômenos dentro do intercurso, a força local é igualmente uma força unificadora, se tratando do efeito que ela produz sobre um espaço restrito. E ele conclui desde entâo que hâ na verdade apenas uma sô força, se manifestando em graus de intensidade variados, e que ele requalifica como força de coesâo:

b.

78

Ttrdo pode se reduzir a uma força : a maior ou menor força coesiva se manifestando sobre cada inovaçâo (sem fazer intervir [al resistência que do resto é a força coesiva de outra regiâo). (Ibid., pp. 1gB-139)

Esse termo de rntercurso designa as trocas humanas mais comple_

xas, implantaçâo em grande escala.

Ed itora l"lercado de Let r.as

(15)

Singuloridade e diversidode dos falos linguogeiros: tentativo de sintese

Com base na abordagem que acaba de ser resumida, distinguiremos cinco niveis de apreensâo de singularidade/

diversidade dos fatos de linguagem.

a) Adotando

um

ângulo exclusivamente ontolôgico (se perguntando o que é

-

em si

-

a linguagem), podemos considerar, ap6s Saussure e fazendo eco à anâlise proposta sobre

o

tema

por

Coseriu (1987), que

a

humanidade se catacteriza por um "fato de falar" continuo ou ininterrupto, que explora os recursos fônicos e estruturais disponiveis no equipamento mental e comportamental da espécie; nesse sentido, existe uma ûnica lingua humana.

Mas sendo esses recursos universais mais numerosos

e

diversificados

que o exigido por um sistema

de comunicaçâo verbal, cada comunidade utiliza apenas uma parte restrita, e os inumerâveis idiomas humanos (quer se

trate de dialeto, de pidgin ou de lingua oficial) constituem muitos sistemas poderosos

em um

subsistema desses recursos para assegurar a intercompreensâo.

Além

disso, sob

o

efeito dos fatores coesivos de identificaçâo/interaçâo (o "campanârio" e o "intercurso" de Saussure), esses idiomas sâo estendidos entre o movimento

de

singularizaçâo

("divisor") e o

movimento

de

troca ("unificador"). Essa tensâo é um dos fatores do dinamismo que os caracteriza: todo idioma é sempre a sede do processo de transformaçâo desdobrando-se

em

ondas inovadoras sobre os eixos histôrico e geogrâfico, e do ponto de vista ontolôgico, um determinado dialeto ou uma determinada lingua constitui apenas uma configuraçâo momentânea d.a

implantaçâo dessas ondas no tempo e no espaço. E desse mesmo ponto de vista,

a vida

das lfnguas se apresenta fundamentalmente como p/un1rn guismo em movimento.

b) Sob o ângulo dos usuârios comuns da linguagem (os "sujeitos falantes"), as dimensôes pertinentes sâo de

Sénie Ideias Sobre Linguagem 79

(16)

ordem praxiol6gica e gnoseol6gica. por um lado, em suas

trocas comunicativas

os

falantes exploram

de

maneirq prâtica as formas verbais (das unidades_s .

da confisuraçâo tinsufstica em

"n", ;"iT:ï"ffi;:J::]

por outro lado, eles se dotam de conhecimentos relacionados

a

essas formas, que eles armazenam

e

organizam nessa entidade

fisica que n6s

qualificamos

de lingua

inrcrna (confira. Bronckart

e Bulea

2011,

;

Bulea 2010b)

e

que

Saussure descreve como segue:

ï\rdo o que é levado aos lâbios pelas necessidades do discurso, e por uma operaçâo particular, é a fala (parole).

Tlrdo o que estâ contido no cérebro do individuo, o dep6sito das formas ouvidas e praticadas e do sentido delas, é a lingrua (langue). (in Komatsu e Wolf 1996, pp. 6b_66)

Essa lfngua interna é um sr.stern a

de

representagôes organizando

as

correspondências

entre o

dominio das unidades

e

estruturas

do

idioma

em uso e o

domfnio

das

unidades

e

estruturas

do mundo exterior ou

do pensamento. Ainda gue possamos excluir alguns usuârios, em certas comunidades particularmente isoladas, que nao imaginam que existem outras configuraçôes de linguagem que a deles, a maior parte dos humanos sâo confrontados à existência de outros idiomas, e vârios dentre eles dominam dois ou vârios; desde entâo, as correspondências que, na lingua interna, sâo colocadas entre entiàades de linguagem e entidades referidas, quase nunca sâo bijetivas, mas se organizam em uma rede de relaçôes cuja complexidade e a eventual hierarquizaçâo dependem do grau de exposiçâo ou de prâtica plurilfngues dos individuoslmplicados.

c) Sob o ângulo do funcionamento socia,l, as dimensôes praxiolôgica

e

gnoseol6gica

têm um

aspecto diferente, que tende a abrandar, a neutralizar, por vezes a ignorar o plurilinguismo dinâmico caracteriz"rrJo

",,verdadeira vida,, da linguagem. No plano das prâticas, toda nova produçâo verbal se inspira necessariamente em produçôes anteriores

B0

td.itora

Mercado de Letnas

(17)

no mesmo idioma, e tende entâo a se conformar às normas de linguagem, no sentido que Coseriu dâ a essa noçâo, que

nâo diz respeito ao registro correto/incorreto mas àquele do continuo normal/anormal:

[...] os atos linguisticos sâo atos de criaçâo inédita [...]

mas sâo, ao memso tempo [...] atos de re-criaçâo; nâo sâo invençôes ex-novo e totalmente arbitrârias do individuo falante, mas, ao contrârio, se estruturam a partir de

modelos precedentes, que os novos atos contêm e, ao mesmo tempo, superam. Em outras palawas, o falante utiliza, para a expressâo de suas intuiçôes inéditas, modelos, formas ideais que encontra no que chamamos de

"lfngua anterior". [...] (Coseriu 1989, p. 94)Z

No plano gnosiolôgico, todo idioma

estâ potencialmente sujeito aos procedimentos de constituiçâo de saberes formais que podem retroagir secundariamente sobre as normas que acabam de ser evocadas. Esses saberes formais geralmente abstraem o dinamismo linguageiro para

"fixar" dimensôes estruturais ou gramaticais de um estado

de

lfngua,

e

sabemos

que em

certos quadros te6ricos (confira em particular a Gramâtica Gerativa) a diversidade

e

histôria das linguas sâo consideradas como aspectos negligenciados, inriteis de teorizar.

d)

Sob

o

ângulo politico,

evocamos as açôes de imposiçâo

de

uma lingua

de

Estado, desenvolvidas, em periodos e ritmos diversos segundo as naçôes, do séculoXVI

ao inicio do século )0(. Neste momento, se simultaneamente [...] los actos lingùisticos son actos de creaci6n inédita [...] pero son, al mismo tiempo [. . .l actos de re-creaci6n ; no son invenciones exnovo y totalmente arbitrarias del individuo habiante, sino que se estructuran sobre modelos precedentes, a los que los nuevos actos contienen y, al mismo tiempo, superan. Es decir que ei hablante utiliza, para Ia expression de sus intuiciones inéditas, modelos, for- mas ideales que encuentra en 1o que llamamos "lengua anterior"

[...] (Coseriu 1989, p. 94).

7

Sér1e ldeias Sobre Linguagem B1

(18)

à

constituiçâo

de um

quadro europeu dominante, essag naçôes assistiram

a

procedimentos

de

aceitaçâo

ou

de tolerância de lfnguas ,,regionais", a ideologia centializadora, ignorante

do

dinamismo linguageiro

e

rejeitando toda diversidade, se mantém, no entanto, em muitas instituiçôes oficiais como atesta este trecho do discurso pronunciado em 1989 pelo antigo primeiro ministro francês Michel Debré, em sua recepçâo na Academia francesa

A lingua francesa é atacada por linguas estrangeiras cuja força vem menos de sua qualidade intrinseca que do nrimero de homens gue as falam, No interior de n6s mesmos, ela deve se impor à linguas ditas ,,regionais,,

cuja promoçâo por vezes artificial exprime frequentemente uma vontade de desmembramento politico. (rn Debré e Bernard 19gg)

e) TYatando das relaçôes entre as linguas e a psicologia presumida de seus falantes, Saussure contestou a concepçâo dominante a qual aderiam Humboldt, schreicher e muitos outros (confira acima), e se ele nâo opôs a essa concepçâo uma posiçâo prôpria, positiva

e

explfcita, sua anâlise do estatuto e das condiçôes de elaboraçâo dos signos fornece, todavia, os elementos decisivos que permitem esclarecer a natureza das relaçôes entre fatos de linguagem e fatos psicol6gicos. Sem entrar em detalhes sobre

a

semiologia saussuriana que um de n6s analisou anteriormente (confira Bulea 2005

;

2073), n6s discutiremos

as

consequências, para nosso questionamento, da arbitrariedade dos signos, e mais precisamente das duas facetas dessa propriedade.

Por um lado, os signos sâo imotivados, na medida em que a escolha dos sons mobilizados na sua face significante é totalmente independente das propriedades dos objetos, estados ou acontecimentos do mundo que sâo designados

pela face significativa; e essa

independência existe também no nivel de certas propriedades sintâticas, o que nos conduziu

a

evocar

o

fenômeno complementar

de

,,o

arbritrârio de disposiçâo" (confira Bronckart 1,977,

p.

116).

Em razâo dessa independência das entidades de linguagem

82 Editora Mercado de Letras

(19)

s e t, a s 3

considerando as propriedades

do

mundo, sua seleçâo e

sua

conformaçâo levantam inevitavelmente "escolhas"

efetuadas por grupos de locutores (de "acordos sociais"

segundo a f6rmula de Saussure), o que parece à primeira vista compativel com a tese tradicional de uma influência da psicologia dos falantes sobre a escolha das entidades de Iinguagem'

Mas

por

outro lado,

os

signos

e

as estruturas de [nguagem sâo radica]mente arbitrârjas, na medida em que a seleçâo das imagens sonoras discriminantes e sobretudo aquela da exlensâo e da conformaçâo das representaçôes constitutivas dos significados variam de lingua para lfngua de maneira totalmente aleatôria. E a anâlise saussuriana

nesse dominio mostra que sâo os

acoplamentos significante/significado que conferem uma forma estâvel às representaçôes propriamente cognitivas dos locutores;

essa anâlise implica que nâo existe psicologia prévia dos locutores que condicionaria as escolhas linguisticas, mas que sâo, ao contrârio, as entidades lingufsticas que dâo forma à psicologia dos locutores.

Essa inversâo de perspectiva abre entâo a porta para a disposiçâo do determinr'smo ou do relativismo linguistico (confira Whorf 1964), mas esse nâo é no entanto admissivel enquanto

tal pelas

tazôes

que

seguem. Certamente a criança se apropria e interioriza os signos e as estruturas de uma ou de vârias linguas naturais e suas formas iniciais

de

pensamento

sâo

necessariamente marcadas pelas modalidades particulares de delimitaçâo e de organizaçâo dos signos pr6prios a essa (ou essas) lingua(s). Mas essa influência tende

a

desaparecer

no

desenvolvimento por duas ordens de razâo. Primeiramente, porque a criança é progressivamente confrontada, particularmente no quadro da educaçâo formal,

a

corpus

de

conhecimentos que jâ foram objeto de abstraçâo e de generalizaçâo com relaçâo aos determinismos sociais e semiôticos, e os conteûdos e as estruturas de seu pensamento acabaram entâo por usar os

traços do carâcter abstrato dessa ordem de conhecimento.

Em seguida, como demonstrou

a

obra de Piaget (confira

Série Ideias Sobre Linguagem B3

(20)

Piaget

e

Inhelder j.966),

o

desenvolvimento posterior de pensamento se caracteriza pela introduçâo de poderosas capacidades de abstraçâo e de generalizaçâo sob o efeito das quais uma parte importante do funcionamento mental se dessemantiza, se descontextualiza,

e

se organiza ern operaçôes formais, razâo pela qual os indivfduos bilfngues nâo sâo afetados por uma forma de esquizofrenia.

Para concluir,

a

psicologia

dos

humanos

é

entâo sempre, no inicio, marcada por modalidades sob as quais a lfngua utilizada se dirige ao mundo ao redor; mas, em

seguida, os

processos

de

desenvolvimento cognitivo conduzem

à

elaboraçâo

de

formas

de

pensamento que

se

abstraem dessa marcaçâo

inicial, de tal

modo que coexistem em cada humano: uma forma

de

pensamento s6cio-linguageiro dependente e uma forma de pensamento de carâter universal.

Dimensôes especificas e generllimvek dos linguo nolurak

Como

é

evidente

a partir

das anâlises anteriores, todo fato linguageiro comporta de um lado propriedades gerais ou generalizévers que resultam do carâter universal da atividade de falar e do estoque potencial de recursos que essa atividade estâ suscetivel a explorar, e, de outro lado, propriedades especificas que sustentam que, em um estado de implantaçâo da onda lingufstica universal, sâo explorados apenas subconjuntos

de

recursos,

por

vezes associados aos subconjuntos

de

operaçôes constitutivas da atividade de falar. No que segue, tentaremos aprofundar a anâlise desses dois modos de propriedades do ponto de vista do ISD, apoiando-nos primeiro em reflexôes de um linguista cujos trabalhos estâo na origem da emergência de nosso quadro te6rico: Antoine Culioli. Esse riltimo destacou

a

necessidade

de

construir

um

modelo

da

atividade de linguagem integrando diferentes dimensôes que estâo ai

B4 Editora f4ercado de Letras

(21)

implicadas, e de se colocar, em seguida, a questâo do que, nas rubdcas desse modelo, se insere respectivamente no especifico e no generalizâvel:

Levaremconta a atividade de linguagem é necessariamente construir um objeto complexo, heterogêneo, uma vez que sua modelagem assume a articulaçâo de vârios dominios.

Levar em conta o fenômeno das linguas é necessariamente colocar a questâo do especifico e do generalizâvel, do contingente e do invariante. Vê-se em seguida como essa dupla tomada de consciência vai, segundo os indMduos ou os grupos, modelar a pesquisa em tal ou tal sentido.

(Culioli 1990, p. 11)

Em eco ao duplo pedido de Culioli, distinguiremos cinco "dominios" que se diferenciam pela maneira como se coloca a questâo do especifico e do generalizâvel; trata-se dos dominios de gêneros textuais, dos tipos de discurso, dos (outros) mecanismos da arquitetura textual, da sintaxe proposicional e do léxico.

Desde os trabalhos fundadores de Volochinov (confira 7926119811; 7929I2OtOl), admite-se

que toda

produçâo

Iinguageira se origina de um gênero textual determinado, a saber de um modo especifico de composiçâo de textos, associado a certas restriçôes de seleçâo de recursos lexicais e sintâticos. Admite-se igualmente que esses gêneros se desenvolveram

no

quadro

de

finalidades comunicativas relativas a um

tipo

determinado de atividade (cientifica, Iiterâria,

juridica,

religiosa, comercial,

etc.) e/ou

dentro

de um tipo

determinado

de midia (a

imprensa escrita,

a

televisâo,

a web) e

que cada gênero seja, entâo, em principio adaptado

a

essas finalidades

de

atividades e/

ou

a

essas midias.

A

genericidade

-

enquanto principio

de

adaptaçâo

da linguagem aos tipos de

atividades humanas

-

constitui desde entâo um primeiro invariante, e na medida em que os tipos de atividades coletivas e de midia tendem a se globalizar, sâo constituidos numerosos

gêneros

tendencialmente

universais, o que

atesta

particularmente o fato de que, nos trabalhos relacionados

Série Ideias Sobre Linguagem B5

(22)

ao biunguismo (confira particularmente Dolz

e

ldiazabql 2OIA),

as

denominaçôes

de gênero

(romance, artigo cientifico, debate priblico, sermâo, etc.) sâo apresentadàs como designaçôes transversais,

cuja

generalizibilidade nunca

é

discutida. Observa-se também,

no

entanto, que existem gêneros pr6prios a uma comunidade, ê/ou q"À

"

hierarquia de valores atribuidos aos gêneros varia segundo as comunidades; se elas sâo importantes, essas diferenças sâo, no entanto, da cultura e da histôria, nâo de restriç6es vindas das propriedades particulares das lfnguas utilizaâas.

Tal como n6s os definimos (confira Bronckart 1997,

capitulo

5), os tlpos de

drscurso sâo configuraçôes de entidades lingufsticas infra-ordenadas

tendo em

conta

os textos, que

semiotizam

quatro

mundos dr'scursjvos

distintos: "Narrar implicado",,,Narrar autônomo",,,Expor

implicado",

"Expor autônomo". Esses

tipos

discursivos têm como funçâo constituir estruturas de troca entre as representaçôes individuais e as representaçôes coletivas.

Tendo esses dois tipos de

representaçâo suportes disjuntos (organismo vs obras)

e

formas

organizaçâo

distintas

(ordem psicol6gica

ys

ordem sociol6gica), os

tipos

discursivos constituem quadros

que

asseçluram a interface e o trânsito das representaçôes de um domfnio a outro, ao

"ir"

(produçâo verbal) e ao ,,retorno,, (recepçâo/

interpretaçâo).

Em

razâo dessa funçâo essencialmente psico-cognitiva, os

tipos de

discurso parecem constituir também invariantes linguageiras, o que confirmam estudos realizados em alemâo, inglês, basco (confira plazaola 2OO7), catalâo, castelhano ou português (confira Machado lgggi:

que validam a existência dos quatro tipos e mostram que sua marcaçâo consiste essencialmente

em

distribuiçôes diferenciais

das

unidades

dêiticas e das

unidades de valor temporal, o impacto discriminativo desses dois tipos

de

unidades depende, sobretudo,

da maior ou

menor compleddade do sistema temporal de cada lfngua.

Além da

distribuiçâo

dos tipos de

discurso, os mecanismos que constituemaarquiteturatextual sedividindo em três grupos:

a

planificaçâo, a textualizaçâo (conexâo e

86 Editona l4ercado de Letras

(23)

coesâo nominal) e a responsabilizaçâo enunciativo (gestâo das vozes e das modalizaçôes). Na base dos trabalhos hoje disponiveis, parece que esses mecanismos sâo necessârios para assegurar a inteligibilidade de um texlo, qualquer que seja a lfngua utilizada, e eles terâo, portanto, o estatuto de invariante, como atesta particularmente

a

"gramâtica do texto" elaborada por Elosegi e Esnal (2004), assim como as pesquisas de ldiazabal (1994), Idiazabel e Larringan (1997) e

Larringan (2007), que mostram de um lado que as categorias de mecanismos inicialmente estabelecidas sobre a base de uma anâlise de textos francês podem ser exploradas sem dificuldade para a analise de textos bascos, e que mostram também que as aprendizagens escolares de um mecanismo podem ser eficazmente transferidas de uma lingua a outra.

Dois

tipos de

problemas se colocam,

no

entanto, nesse nivel. O primeiro foi identificado por Culioli: "o verdadeiro problema [...]

é

que nâo existe correspondência termo a termo, de um lado, dos marcadores em uma lingua dada e, de outro lado, das categorias invariantes que encontramos através das linguas" (1990, pp. 14-15); os tipos de unidades linguisticas mobilizadas para semiotizar os mecanismos da organizaçâo textual podem, com efeito, variar mais ou menos segundo as linguas, o que constittiumprimeirolugar

de especificidade. O segundo problema é de saber em que medida essas diferenças de "marcaçâo" nâo causam uma diferenciaçâo das operaçôes psico-linguageiras implicadas nos mecanismos;

a titulo de

exemplo,

se

tratando da coesâo nominal,

as

operaçôes psico-linguageiras podem ser as mesmas numa lingua que dispôe de determinantes possessivos e em uma lingua que nâo dispôe? Ouestâo para n6s aberta e que mereceria, portanto, um exame empirico.

No plano da

morfologia

e da

srntaxe fré.sica, os elementos invariantes

sâo raros e as

linguas exibem claramente suas especificidad.es.

Em se tratando

das categorias gramaticais, como Greenberg (1966)

o

tinha demonstrado

hâ muito

tempo, somente

os

nomes

e

os verbos sâo encontrados em todas as linguas, com uma variaçâo

adicional

considerâvel

na morfologia

dessa tiltima categoria ; e as variaçôes encontradas nesse nivel

se

reproduzem evidentemente

naqueles dos

grupos

Sét'ie Idejas Sobre Linguagem 87

(24)

sintâticos.

Em

se tratando

de

espécies

de

frases,

q

distinçâo dos tipos (declarativo, interrogativo, imperativoT excramativo) parece sensivel à universaridade, a existência e/ou a distribuiçâo das formas (negativa, passiva, enfâticàJ

constitui em contrapartida um importante lugar d;

variaçâo. Finalmente,

a

conformaçâo mesma Aa ietaçao predicativa constitui um riltimo lugar de variaçâo, oporrAÀ particularmente organizaçôes ergJti.ras e acusativas, com um conjunto de efeitos secundârios sobre a distribuiçâo

do;

casos (ou funçôes gramaticais).

Em se tratando finalmente do lédco, ou das unidades- signos,

o

problema se coloca

de

maneira diferente se o

abordamos sob o ângulo do significante ou do significado.

Em razâo da imotivaçâo da reÈçâo de signo 1evàcaOa em Singularidade e diversidade dos fàtos linguageiros

;tentativa de

srntese, anteriormente),

a

conforiraçâo sonora dos significantes é um evidente lugar de variaçâo. Mas no plano dos significados, convém distinguir aqueles que se dirigem aos referentes observâveis no meio objetivo (seres, obje--tos, lugares etc.) e aqueles que se dirigem a referentes iàeais, ou psfquicos. No primeiro caso, essés significados têm uma extensâo e uma organizaçâo em paradigma que apresenta evidentes similitudes entre linguas lcJnfira-Roscn

fg7â;

no segundo, extensâo e organizaçâo em paradigma poAem apresentar, ao contrârio, diferenças considerâveis.

Em

conclusâo, notar_se_â, primeiro,

que os

fatos linguageiros estâo submetidos a t;ês ordens de restriçôes geradoras de invariância:

.

a restriçâo dos tipos de atividades humanas, na origem da (relativa) generalidade dos gêneros de textos;

.

arestriçâodascondiçôes detrocaentrerepresentaçôes individuais e representaçôes coletivas, produzindo a generalidade dos tipos de discurso;

. a

restriçâo das propriedades objetivas

do

meio referido, provocando certa taxa de generalidade na confignrraçâo dos significados se dirigindo a esse mesmo meio.

BB Editora Mercado de Letras

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