FuLiA / UFMG, v. 2, n. 3, set.-dez., 2017 – POÉTICA
eISSN: 2526-4494
DOI: 10.17851/2526-4494.2.3.188-189
Mistérios do futebol
Cristovão Tezza
Romancista, contista, cronista e ensaís- ta, Cristovão Tezza nasceu, em 1952, em Lages, Santa Catarina, mas, acompa- nhando seus pais, mudou-se aos oito anos de idade para Curitiba, onde vive até hoje. Esta cidade é cenário de boa parte de sua literatura, como nos romances Trapo (1988), Juliano Pavollini (1991), O fantasma da infân- cia (1992), Uma noite em Curitiba
(1995), Breve espaço (1998) e O fotógrafo (2004).
É autor de mais de 20 livros publicados no Brasil. Suas obras já foram traduzidas em 18 países, como China, Estados Unidos, Noruega, México, Eslovênia e Inglaterra. Foi cronista semanal do jornal curitibano Gazeta do Povo, onde publicou esta crônica, que bem nos diz sobre o que é o futebol.
Fonte: site do autor – http://www.cristovaotezza.com.br
As melhores perguntas são as que não têm resposta. Por e- xemplo: qual o mistério do futebol? Não sei. Olhando de longe, é um grupo de marmanjos uniformizados participando de uma gincana, todos correndo atrás de uma bola sobre um gramado retangular marcado com linhas brancas. A bola deve ser levada a pontapés para dentro de uma rede sustentada por traves. Só um dos rapazes pode segurar a bola com a mão.
Quem controla tudo é um sujeito mais velho, de uniforme di- ferente – quando esse homem trila um apito, o que faz com frequência, todo mundo para de correr e olha para ele. Às ve- zes ele tira do bolso um cartão amarelo e mostra para alguém, que quase sempre dá uma risadinha e faz “não” com a cabeça, as mãos na cintura. Se calha de ele pegar um cartão vermelho, que vale mais, o sujeito sai furioso do campo e não volta. Em torno do gramado sempre tem umas arquibancadas cheias de gente berrando e sacudindo bandeiras. Quando a bola vai para dentro da rede – o que é relativamente raro –, as pessoas de par- te das arquibancadas se levantam todas ao mesmo tempo e fa- zem uma gritaria demorada, incompreensível e feliz; outra parte fica quieta e triste.
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Imagino que, pela descrição, vocês entenderam mais ou menos o que é o futebol, mas alguma coisa ficou faltando. É a mesma sensação que tenho quando tentam me explicar o beisebol: um bando de quarentões barrigudos de ceroulas ridículas com bonés da cabeça que, de vez em quando, jogam uma bolinha de criança para acertar a cabeça de um sujeito agachado com um capacete no rosto e uma luva deformada na mão; de costas para ele fica um cara ameaçador balançando um perigoso porrete na mão. De vez em quando um deles lar- ga tudo e dispara a correr meio que sem direção (o campo é torto), tentando agarrar a bolinha que voa. Parece que é isso.
Claro, faltou tudo. No caso do futebol, eu me pergunto por que esse esporte, sendo simples como uma brincadeira de criança, é capaz de me transtornar tão completamente. Crise do Senado, queda de avião, gripe suína – passo correndo pela parte séria do jornal e me detenho profundamente na recupe- ração de Alex Mineiro e no gênio de Paulo Baier, o Zidane da Baixada. Grito com os jogadores como se eles pudessem me ouvir. Proponho substituições tão óbvias que só o burro do técnico não entende. Pior: fico feliz se o juiz não marca uma
falta escancarada do meu time e furioso se ele apita um pênal- ti contra que de fato houve. Tudo que é moralmente errado me atrai: faço cálculos detalhados na classificação do Brasilei- ro, no desespero de ver o Atlético um ou dois degraus acima, enquanto com o rabo do olho investigo, mesquinho, a queda do Coritiba – equipe de grandes amigos meus, e até da minha própria mãe – com uma felicidade secreta mas angustiada, porque afinal amanhã tudo pode virar do avesso. Por que o futebol faz isso comigo?
Não sei.
* * *
Publicado originalmente no jornal Gazeta do Povo, 25 de agosto de 2009. Republicado na coletânea:
Um operário em férias – crônicas Rio de Janeiro:
Editora Record, 2013, p. 105-106.